Image Map

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Secretary III - Capítulo 18

Confusas surpresas
(Músicas do capítulo: I'll Be Your Baby Tonight da Norah Jones e Lightning Crashes do Live. Se possível, deixe ambas carregando e as coloque para tocar quando cada aviso surgir.)




Minha percepção aguçada alertou que algo estava extremamente errado. Enquanto eu tentava arduamente me livrar da incômoda escuridão, como se meus globos oculares não aguentassem mais permanecer cobertos, mas mesmo assim se demonstrassem fracos demais para lidar com a luz do ambiente onde eu me encontrava. Então um vento me atingiu ferozmente, como se estivesse sendo transportada para outro lugar com agilidade. Em um vislumbre do que julguei se tratar de um ambiente largo e vazio, meus olhos se fecharam fortemente ao constatar que a claridade ainda era muito para ter de aguentar. Uma quantidade generosa de tempo se passou até que, finalmente, eu pude enxergar perfeitamente tudo ao meu redor. A princípio, pestanejei diversas vezes e senti a confusão se alastrar por minha mente. Era uma platéia de poltronas pretas, iluminada apenas por uma fraca luz avermelhada que surgia cada vez mais evidente do centro de um gigantesco palco coberto por cortinas em vermelho sangue. Eu odeio meus sonhos. Por que a maioria deles tem de ser tão mirabolante e espantosa, além de conter uma fotografia semelhante a do filme Sin City? Sim, era evidente que eu estava sonhando. Existiria explicação melhor do que essa, visto que o ser misterioso que surgiu de trás das cortinas era uma cópia minha? Suas feições apagadas pela falta de luz me fizeram perceber que havia uma contribuição do tempo por ali. Era levemente notável o aumento de idade através das linhas de expressão que se formaram ao redor de seus olhos e lábios quando a mulher sorriu para o nada. Aquela era Demetria Jonas, só que com mais idade, usufruindo do mais genuíno botox. O vestido em seda vermelha que cobria seu corpo era, além das cortinas e das luvas que terminavam em seus cotovelos, a única coisa que parecia ter cor. O restante eram borrões com a mistura do preto e do branco, formando um cinza deprimente. Ela era uma versão um tanto quanto mais recatada de Jessica Rabbit, mas sem cabelos vermelhos. A cor dos fios dos cabelos daquela mulher era idêntica a dos meus. É claro, pois era como estar olhando de frente para um espelho sombrio que reflete o que mais tememos nos tornar.
O último som que pude distinguir fora o de seus saltos super altos e finos tilintando contra o chão de madeira.
Um solavanco pareceu me puxar para frente, quando a escuridão voltou a banhar o local, então abri os olhos um pouco assustada e constatei que estava na primeira das várias fileiras de poltronas. A imagem do palco havia mudado, as cortinas desapareceram e a mesma mulher de antes permanecia com o corpo descansando em uma poltrona preta de couro. Seus olhos aflitos, melancólicos e exageradamente maquiados fitavam algo através da janela coberta por persianas. Lá estava a droga do clima de um típico firme noir novamente. Como se uma guerra começasse a se instalar do lado de fora, ela rapidamente inclinou-se para trás, tentando se proteger de quem quer que pudesse enxergá-la do lado de fora. Aparentemente, aquela era uma sala de escritório, isso ficava evidente devido a mesa de vidro, vários papéis espalhados pela mesma e um homem vestido socialmente que entrara pela porta de supetão.
Ainda não sendo capaz de identificar a identidade do ser do sexo masculino, senti a repugnância se alastrando pelo meu interior lenta e dolorosamente enquanto fitava embasbacada minha cópia levar um desprezível cigarro até sua boca, o prendendo com os lábios pintados em batom vermelho. Definitivamente, era um sonho.
Em um corte brusco de cena, uma platéia empenhada surgiu. Eu era a única que permanecia congelada feito estátua, já que o restante daquelas pessoas começou instantaneamente a aplaudir assim que os olhares dos dois acima do palco se encontraram, quase sendo capazes de despejar faíscas um sobre o outro. Eu não tinha forças para levantar mediante àquela catástrofe em forma de espetáculo.
Então, após uma longa conversa entre ambos, que fui incapaz de ouvir com clareza, algo chamativo fora revelado pelos lábios da mulher, assim que a fumaça escapara pelos mesmos.
Terno preto, por favor. - eu diria que ela tentava com empenho seduzir o homem, que aos poucos passou a adquirir uma expressão familiar a mim. Todo o seu corpo era preenchido pelo amargurado preto e branco, mas a cor dos olhos era gritante. As íris verdes escaldantes mediram a mulher de cima a baixo antes que os dois se entregassem a um beijo fervoroso, escandaloso.
- Está gostando do que vê? - identifiquei uma voz masculina surgir ao meu lado, mas sem vontade de virar o rosto, apenas neguei com a cabeça, segurando com força nos braços da poltrona. - Por que você não me responde?
Virei o rosto bruscamente, tendo a certeza de que minha expressão era rabugenta e impaciente.
- Quem é vo... Matthew?! - no instante seguinte, senti meu queixo cair insignificantes centímetros em espanto. As sobrancelhas do homem que não deveria ter mais de vinte anos da idade se uniram em confusão, enquanto ele tentava entender o que a urgência em meu olhar tanto lutava para lhe dizer. Era ele, eu tinha certeza. Os olhos não mudaram em nada, e a expressão continuava a mesma, exceto pelo fato de que estava mais máscula. Porque, é claro, ele era um homem feito. Aliás, aquele homem lindo tinha saído de dentro de mim? O orgulho só faltou explodir em meu peito, e por um segundo me esqueci de tudo que acontecia ao meu redor. Mas bastou um tic tac do relógio pendurado em algum lugar desconhecido para que as coisas voltassem a me chocar.
- Oi, mãe. - ele respondeu simplesmente, com um sorrisinho de canto que lembrava absurdamente seu pai. - Você não respondeu minha pergunta. - o olhei confusamente, não me recordando de pergunta alguma. - Está gostando disso?
- Não importa, estou convicta de que é um sonho. - respondi-lhe confiante, vendo meu bebê... Digo, meu filho adulto negar com a cabeça.
- Por enquanto, mãe, por enquanto. - Matt adotou uma expressão descrente, como se me contrariasse em silêncio.
- O que quer dizer com isso?
- Olhe para frente. - ele pediu e seu rosto se virou, então percebi que apenas nós estávamos na platéia. O casal ao centro do palco não estava mais ali, apenas os vestígios de suas presenças graças a mistura de perfumes que impregnava no ar e fazia meu estômago embrulhar. Eu conhecia um daqueles dois perfumes. - Esse é o seu futuro. - seu dedo indicador apontou para um canto do palco, onde duas pessoas discutiam e tentavam não elevar o tom de suas vozes. Algo apertou em meu peito quando reconheci o casal. Joseph e eu. A discussão ficava cada vez mais audível, e eu não me concentrava nas palavras proferidas, mas sim na forma como ele olhava para ela, digo, para mim. Procurar por amor ao redor daqueles dois seria o mesmo que procurar uma agulha em um palheiro. Impossível.
- Não, isso não pode estar certo. - me mostrei consternada, tentando levantar e fugir dali. Não queria assistir mais nada.
Matthew respirou fundo e se ajeitou em sua poltrona, aproximando-se de mim como se ninguém pudesse ouvir o que diria a seguir.
- Jamie se casou, mas nem ao casamento dele você compareceu. Estava muito ocupada com os musicais. Eu, bom... - uma breve pausa para um lamento em forma de suspiro. - Eu consegui entrar na faculdade, mas as coisas não funcionaram muito bem, já que não tive uma mãe presente quando algo dava errado. E aconteceu muitas vezes. - Matthew parecia desapontado consigo mesmo. - Papai ficou tão... Irritado com a sua repentina mudança de comportamento, que praticamente se esqueceu de todos nós. Ele vive dentro de uma bolha de fúria e amargura, mas eu sei que no fundo tudo que quer é sua esposa de volta. Como ela costumava ser. Todos querem a Demetria como ela costumava ser. - poderia jurar que vi seus olhos verdes marejarem. - Eu quero a minha mãe como ela costumava ser.
Minha respiração estava acelerada diante de todas aquelas palavras sem fundamento. Não, algo como aquilo jamais poderia acontecer, era mais do que intolerável. Passei a sentir como se meus músculos começassem a retesar, o corpo a trepidar, o suor frio que já cobria minhas mãos trêmulas. A sensação de realidade era tão tangível que pensei estar no caminho para um absurdo choque de realidade. Temi constatar que jamais acordaria, que não seria possível escapar daquele pesadelo iminente. Lágrimas embaçaram minha visão, mas segurei meu lábio inferior com os dentes, determinada a afugentar aquele sentimento tão nocivo.
Eu não abandonaria minha família por algo frívolo como um musical. Não deixaria de acompanhar o crescimento dos meus filhos por nada. Não deixaria de amar Joseph por nada. Não tinha a ambição de ser mundialmente conhecida, mas tinha a ambição de não perder o que conseguira conquistar. E, se aquele era um precioso alerta para que eu não seguisse determinado caminho, eu tinha habilidosamente capturado a mensagem. Aquele homem ao meu lado era meu filho, meu filho tentando me mostrar as ruínas do que seria uma vida que certo dia pensei em apreciar viver. Não, definitivamente, não.
Quando voltei minha atenção para Matthew, o mesmo tinha um semblante tranquilo e angelical na face com pequenos pontinhos de barba. Seus dedos seguravam um isqueiro que acendia um cigarro. Ele o tragou despreocupadamente enquanto afastava fios desobedientes de cabelo de sua testa. Mais uma característica do pai. Ou duas. Aquilo fez meu sangue ferver, fez com que minhas pupilas possivelmente se dilatassem e eu fechasse ambas as mãos em punhos. Meu menino fumando? Não!
- Matthew, tire esse cigarro da boca agora mesmo!
Ele simplesmente riu de mim.
- Dá um tempo, mãe, eu não sou bebê.
- Sim, você é!
- E tem mais... Você não vai conseguir amenizar anos de descaso com essa preocupação repentina e excessiva.
Com outro risinho debochado dele, eu fechei meus olhos com força e ordenei a mim mesma “Acorde, Demetria, acorde! Acorde, acorde, acorde... Agora!”
Novamente presa à escuridão, sem sinal das imagens anteriores, respirei aliviada quando, de repente, percebi estar com o corpo deitado em uma superfície macia, desejando com todas as forças para que aquele sonho nunca se concretizasse em uma amarga verdade. Desejando que meu Matthew ainda fosse apenas um adorável bebê quando eu abrisse meus olhos e sentisse o alívio no peito por ser entregue novamente à realidade.
 

Com um suspiro incomodado, eu sabia que já não estava mais presa em sonho algum, sabia que já havia despertado para a realidade, mas enquanto uma pequena confusão de ideias embaraçadas continuava atormentando minha mente, preferi me manter com os olhos fechados. Meu corpo estava quentinho mergulhado nas cobertas, e seria um esforço memorável tentar sair dali, principalmente porque o clima voltara a sofrer uma mudança brusca, então lá estava o frio novamente. Só então, conseguindo me desprender de diversos devaneios e prestar atenção ao meu redor, percebi que tinha algo, ou alguém, se mexendo perto de mim. Pensei ser Joseph, mas a cama parecia muito espaçosa, então não era ele. Novamente, senti algo, ou alguém, tocar meu rosto. Certamente era uma mão, uma pequena mão. Fazia um leve carinho em minha bochecha. 
Adê? - o som de uma voz fininha passou por meus ouvidos, me obrigando a sorrir involuntariamente. 
Como eu esperava, o vocabulário de Matthew ficava mais vasto a cada dia. Com “adê?” ele se referia a “cadê?”. Abri os olhos no exato instante em que um bebê tentava subir em meu corpo, foi então que me permiti respirar aliviada. Sim, ele ainda era apenas um bebezinho. Não conseguindo esconder o sorriso bobo que se instalou por minha face enquanto observava o pequeno tentando me abraçar, desvencilhei-me das cobertas grossas para que pudesse ficar mais perto de meu filho. Ele me olhava com uma expressão sapeca, enquanto levantei meu rosto e constatei que seu pai estava parado um pouco longe, apenas observando a situação. 
- Oi, bebê! Bom dia! - envolvi meus braços por seu pequeno corpo, notando que seus bracinhos tentavam a todo o custo envolver o meu, por mais que ele não fosse capaz de muito. Existe forma melhor de acordar do que sendo abraçada pela pessoinha que você carregou dentro do ventre por nove meses? A resposta é mais do que negativa. 
Notando que meu marido se arrumava, já fechando o zíper do agasalho de seu sweatsuit preto, me esforcei para conseguir manter Matt em meu colo enquanto erguia o corpo da cama. Fui para perto de Joe, selando nossos lábios enquanto esfregava a palma de minha mão livre em suas costas, proporcionando-lhe uma carícia singela, em seguida aninhando minha cabeça entre seu pescoço e ombro esquerdo. Ele pareceu compreender que eu necessitava apenas de um breve momento naquele conforto, então permaneceu imóvel. Suspirei sentindo o cheiro de banho recém tomado que emanava da pouca pele descoberta de seu pescoço e fechei os olhos firmemente, tentando afugentar a sensação depreciativa proveniente do pesadelo. Recompus-me logo após, me afastando dele e passando pela porta, percebendo que o homem vinha logo atrás. 
Demi, vou sair para correr, me acompanha? - perguntou descontraído, enquanto ajeitava os cadarços do tênis branco. 
- Hm, acho que não, Joe. - respondi enquanto descia as escadas preguiçosamente. 
- Certo, então eu volto para o almoço. Comporte-se, senhora Jonas! - ele me lançou aquele típico sorrisinho enviesado, então apenas dei de ombros e fiz charme mexendo nos cabelos. Ele sabia que aquela vivacidade explícita em suas feições me deixava suspirando perdidamente encantada, como se nunca tivesse a visto antes. 
- Meu amor, você sabe que só deixo de me comportar quando você está por perto. – avisei com a voz sedutora enquanto mordia o lábio e lhe lançava uma piscadinha esperta. Rimos brevemente e chegamos ao andar de baixo da casa. Fitei as costas de Joseph enquanto o mesmo saiu pela porta da frente após se despedir com outro beijo - um em meus lábios e o outro na testa de Matt -, colocando os fones de ouvido e sumindo pelo jardim. Ele gostava de sair para correr quando tinha as manhãs livres, às vezes, aos finais de semana, até levava os meninos para que pudessem ter um “momento só para os homens”. Joe e Jamie viviam dizendo que precisávamos ter outra mulher em casa para dividir a “coroa” comigo. E, não, eles não estavam se referindo a minha mãe ou Charlotte... Sempre me pegava com um sorriso sonhador no rosto quando aquela hipótese se fazia presente. Mas ainda era cedo demais, certo? Certo. 
Eu teria que bater muito forte com a cabeça antes de pensar em trocar aquele homem por uma droga de vida artística. E talvez, mesmo com o trauma, ainda me restasse um pouco de sanidade o suficiente para reconhecer a burrada que cometeria. Ri com deboche, desejando que Sean e o tal Rusty pudessem ouvir meu riso de onde quer que estivessem. 
Enquanto preparava um simples café para ficar mais lúcida, coloquei Matthew no chão só para ver o que ele seria capaz de fazer. Primeiro, apenas ficou sentadinho no mesmo lugar, tentando alcançar uma de minhas pernas. Depois, com um pouco mais de empenho, segurou uma delas com força e tomou impulso para levantar. Tentei fingir que não me importava com suas tentativas, só para ele se sentir mais decidido a chamar minha atenção. Logo o pequeno estava abraçado às minhas pernas, impedindo que eu pudesse andar para qualquer canto. Prontamente, aquela conhecida intuição de mãe me disse que era só questão de tempo, muito pouco tempo, até que ele começasse a correr só de fraldas pela casa toda feito um pequeno furacão. 
Sem mais nem menos parei de sorrir sozinha, finalizando o preparo do café preto e bebendo um pouco sem vontade alguma. Optei por pegar meu filho nos braços novamente, voltando a subir as escadas para dar uma melhorada em nossa aparência, já que ainda continuávamos de pijamas. Logo Jamie saiu correndo de seu quarto para ir à escola, sem se dar ao trabalho de me dar um beijo de despedida, me deixar verificar se a gravata de seu uniforme estava bem arrumada ou pegar nem que fosse uma maçã na cozinha para levar. Mas eu não queria bancar a mãe neurótica, então gritei apenas um “até logo, filho!” e olhei na janela para checar se seus colegas já estavam mesmo passando por ali. Quando os três atravessaram a rua e tomaram o rumo do colégio, voltei a fazer minhas coisas, mas sem deixar de ficar me questionando o que estava acontecendo com Jamie. Ele andava agitado, ansioso... Certo, existia uma explicação tão óbvia quanto andar para frente, o nascer do sol e o fato de que água não tem gosto. Só podia se tratar de alguma garota. Sorri com a possibilidade, ao mesmo tempo me repreendendo por isso, já que o considerava novo para algo daquela natureza. 
Naquele dia minhas habilidades como professora de piano só seriam utilizadas no período da tarde, então eu teria tempo o suficiente para levar Matthew ao parquinho e fazer outras coisinhas mais de meu interesse. Deixando tudo em perfeita ordem, saí do quarto com meu bebê já de banho tomado e devidamente vestido para uma ida ao parquinho, olhando distraidamente para uma fotografia minha pendurada em um quadro na parede. Eu estava grávida, e na praia. O sol estava se pondo, o céu com aquele tom perfeitamente alaranjado. Apenas minha silhueta ladeada pelo mar logo atrás. Sim, jamais perderia o apreço por fotografias. Meu filho seguiu meu olhar e também a encarou, apontando com o dedinho indicador. 
- Sim, meu príncipe, você também está nessa foto, mas bem escondidinho! – beijei a pontinha de seu nariz e ele riu. 
Depois que fome não era mais um problema para ambos de nós, passei no quarto de Matt para ver se ele queria escolher algum brinquedo em especial para levar. Nancy estava lá dentro e arrumava algumas coisas de um dos armários brancos. Eu deveria ter dito a ela que não precisava se incomodar com aquilo, era algo que eu poderia facilmente fazer. Contratei uma empregada para me ajudar, não para respirar por mim. Como já a considerava da família, vez ou outra nós conversamos simplesmente, com espontaneidade. Eu gostava de conversar com ela, gostava de ver o ponto de vista de pessoas com mais idade e experiência do que eu. Nancy me olhava impressionada quando eu lhe dizia que estava disposta a lidar com o preparo de uma refeição ou qualquer outro afazer. Eu não sou o tipo de mulher que tem medo de usar as pernas, nem o tipo que se considera de cristal e acha que vai quebrar. Aliás, apesar de quase sempre estar com saltos - já era um costume irremediável - andava para lá e para cá o dia todo. Sim, pois seria possível até mesmo fazer cooper dentro de nossa propriedade. 
Uma casa grande demais para poucas pessoas... 
E foi divagando sobre isso que me deparei com algumas roupinhas de Matt que Nancy cuidadosamente tirava do armário para que pudesse organizá-las novamente e melhor. Eram apenas coisas de quando era recém nascido. Luvinhas e touquinhas de lã, seus macacões pequenos com aquele cheirinho suave de bebê que eu guardaria para todo o sempre... Entre outras coisas que me faziam suspirar de saudade da época em que ele era tão pequenino e indefeso. Não que vê-lo andando e se desenvolvendo tão rápido fosse ruim, mas é algo que apenas uma mãe entende. Saudade do passado, misturada com o orgulho do presente e a expectativa para o futuro. Uma sensação gostosa de sentir. 
Finalmente Matt decidiu pegar um de seus carrinhos coloridos, era o que ele mais gostava. Alertei Nancy que sairia um pouco, já passando pelo corredor e voltando a descer as escadas. Eu estava vestindo roupas simples naquela manhã; um jeans skinny escuro, uma blusa rosa pink de botões e mangas longas com um cardigã cinza por cima, assim como botas pretas com um mediano salto nos pés. Meus cabelos presos delicadamente com uma presilha dourada e algumas pulseiras simples enfeitando meu pulso direito. 
Enquanto cruzava o jardim com uma bolsa Prada em um braço e um bebê sendo segurado pelo outro, deixei minha mente vagar por assuntos de dias anteriores enquanto ouvia apenas os saltos de minhas botas contra o chão e o som de Matthew tentando dizer alguma coisa. Tratei de pular desesperadamente de pensamento quando a imagem de Sean surgindo sem explicações na festa de aniversário de meu filho pareceu ganhar vida novamente dentro de minha cabeça. Eu não me permitiria pensar em tal absurdo, principalmente depois do pesadelo que tive naquela manhã. Era com contragosto que eu trataria todo aquele problema, iria ignorá-lo até que desaparecesse. Esse é sempre o melhor remédio. E nem mesmo fiz questão de contar a Joseph, apesar dessa omissão ser responsável por alguns desconfortos em minha consciência. Eu ia ainda pretendia contar, é claro que sim, só precisava de um pouco mais de tempo. 
Observei a imagem de dois veículos estacionados em seus devidos lugares. Era o Rolls Royce Phantom preto de Joseph e o meu Range Rover Vogue, também preto. Afinal, uma mãe precisa de um carro espaçoso. Já Joe era apaixonado pelo seu Rolls Royce. Eu duvidava que ele pensasse em trocar de carro algum dia. 
Acariciei o rosto sereno de meu filho ao ajeitá-lo confortavelmente em sua cadeirinha no banco traseiro, o vendo me olhar curiosamente e questionar “papa”? No exato instante pensei em como as coisas seriam quando meu filho ficasse mais velho, passei a imaginá-lo conversando sobre todos os assuntos imagináveis com o pai, tendo-o como melhor amigo. Sorri enquanto pensava naquelas coisas, entrando em meu carro e parando um segundo para verificar se tudo estava em ordem. A lembrança da conversa que tive com Cassie dias antes surgiu em mente, e esse pensamento não era tão assombroso quanto o anterior. Se eu apenas levasse em consideração que a conversa que tivemos no dia da festa fora mais do que satisfatória, poderia respirar aliviada e agradecer aos céus por não ter perdido uma amiga. Entretanto, perdoar um ente querido que te magoou é como se machucar profundamente. A dor passa, a ferida se cura... Mas a cicatriz nunca desaparece. Ela estará sempre presente para lhe lembrar do fato ocorrido. E justamente no momento mais inoportuno, como quando você acredita que os resquícios da lembrança se desfizeram em sua mente. Perdoar certamente é diferente de esquecer, é surpreendentemente diferente. E como é mesmo que dizem? Confiança é como um espelho, certo? Uma vez quebrado, até existe o conserto, mas as rachaduras irreparáveis estarão sempre ali. Resumindo, eu não sabia o que aconteceria com a nossa amizade, e preferia deixar as coisas como estavam. Não era como se eu tivesse os sentimentos de uma pedra e simplesmente pudesse voltar a rir loucamente com ela e deixar nossa amizade fluir outra vez. Certas coisas machucam de verdade, por mais que tempos depois elas recebam devida explicação. 
Girei a chave na ignição, apreciando o som confortável do motor roncar e manobrei em direção ao portão, que aos poucos se abriu. Saí do jardim e logo já estava na rua, colocando uma música agradável para tocar enquanto fazia um habitual percurso. 


Voltamos para casa na hora do almoço, já que pude me deliciar com o cheiro que vinha da cozinha. Coloquei Matt para brincar no tapete fofo da sala e fui guardar algumas coisas que tinha comprado. Assim que retornei ao cômodo do andar de baixo, senti meu estômago roncar. Até pensei em ir à cozinha para dar uma solução ao problema e ficar espiando nas panelas, provando de tudo um pouco exatamente como uma criança ansiosa para o seu prato preferido, mas o som estridente da campainha mudou o foco de minha ideias. Fui a passos rápidos até a porta e me esforcei para reconhecer o rosto da pessoa que se revelou. Era uma mulher que usava óculos, tinha os cabelos loiros e parecia um pouco envergonhada. 
- Olá, você é a Demetria, certo? - educada, ela estendeu sua mão e eu imitei o gesto para que pudéssemos nos cumprimentar. Antes que continuasse a falar, olhou para dentro da casa, como se quisesse procurar alguma coisa. Virei meu rosto e olhei na mesma direção, mas como não encontrei nada, apenas ignorei e voltei a prestar atenção nela. - Meu nome é Jennifer, eu sou a designer do vestido de noiva da sua amiga Karlie. Desculpe por aparecer aqui, mas é que ela não me atende no celular e eu devo ter perdido o endereço dela, pois não encontro em lugar algum, sou um pouquinho desastrada. - sua explicação ficou evidente, visto que ela parecia mais do que atrapalhada ao falar tudo. - Só passei aqui porque foi o local em que combinamos de nos ver pela primeira vez. - um pouco afobada, ela levou a mão até a testa. Eu lhe disse com um aceno que estava tudo bem, e dei espaço para que entrasse enquanto eu anotava o endereço de Karlie para ela. Pedi que a tal Jennifer se sentasse no sofá e fiz o mesmo no do outro lado, pegando um pedaço de papel e caneta, anotando rapidamente. Ao entregá-lo a ela, observei que uma das pastas que ela segurava estava entreaberta, e era possível distinguir o designer de um vestido vermelho. Suspirei, desviando o olhar. Jennifer sorriu agradecida e se levantou, tentando entender porque eu estava com aquela cara de paisagem. - Algum problema? - perguntou em um baixo tom de voz, estudando minha expressão. 
- Ah, não é nada... - tentei negar com a cabeça, mas meu dedo indicador foi contra o resto do meu corpo e apontou para a pasta. - A cor do vestido. - ela logo entendeu do que eu falava e puxou a pasta para abri-la e me mostrar. 
- Você não faz ideia de como as noivas estão dando preferência a essa cor. - explicou Jennifer. 
- Tenho ideia, sim, acredite. Eu me casei de vermelho. - apertando meus dedos uns contra os outros, sorri com a lembrança, por mais que alguns fatos ofuscassem um pouco a felicidade que deveria ser completa. Jennifer sorriu animada, um pouco hesitante sobre pedir mais detalhes ou não, então eu mesma os dei antes que ela pedisse. - Mas... Aconteceu um pequeno probleminha, então eu fico triste quando vejo outro vestido da mesma cor. 
- Olha, eu sei que nós não nos conhecemos e que eu já deveria ter saído daqui, mas entenda... Sou designer, amo o que faço e preciso te perguntar urgentemente, Demetria: o que aconteceu? - ri da mistura de desespero e animação que iluminava seu rosto e voz, então pensei por um instante. 
- Aceita ver o pequeno probleminha ao vivo e em cores? - ela voltou a se sentar no sofá antes que eu começasse a subir as escadas. Assim que o fiz, entrei em meu quarto e puxei as portas docloset, me perdendo em meio a diversas outras roupas e pertences até que finalmente consegui encontrar a larga caixa branca. Doía meu coração só de pensar em olhar para o que um dia fora um lindo vestido de noiva vermelho. Naquele momento eram apenas retalhos. E apesar de Jennifer ser uma desconhecida, ela entendia do assunto... Talvez, apenas talvez, pudesse me ajudar. Descendo as escadas, a imagem de Joseph me vendo com aquele vestido novamente veio certeira, obrigando-me a sorrir. E só percebi que meus dentes continuavam expostos quando Jennifer começou a rir discretamente de minha expressão abobada. A acompanhei e voltei a me sentar, entregando-lhe a caixa. 
- Uau! Vejamos... - ela parecia querer fazer certo suspense antes de revelar de uma vez por todas o vestido. Até que o fez rapidamente. Com agilidade, seus dedos tocaram o tecido vermelho e tristonho. Certo, um tecido não tem sentimentos, mas eu sim, e sofria novamente com a lembrança de um momento de impulsividade em que a raiva falou mais alto. Primeiro Jennifer ergueu as sobrancelhas e trincou os dentes, como se estivesse lidando com uma situação alarmante, mas em seguida riu baixinho. 
- Não ria desse acidente, por favor. - pedi, negando com a cabeça, fingindo uma tristeza absurda. Talvez nem fosse tanto fingimento assim. 
Acidente? - seus olhos se arregalaram em minha direção. - Que tipo de acidente poderia ter sido esse? - um pedaço da saia fora erguido, só para que eu pudesse sentir meu coração bater mais rápido. - Ele foi disputado por leões ou coisa parecida? - é claro que não pensei em entrar nos devidos detalhes, não sairia desabafando sobre problemas passamos para alguém que eu não conhecia, então apenas respondi: 
- É uma longa história. - Jennifer não respondeu nada, entendendo que eu não queria compartilhar, apenas continuou analisando os estragos. Logo o vestido todo tinha sido tirado da caixa e repousava sobre o chão. 
- A parte do tronco não sofreu muitos danos, o grande problema está na saia. Veja só... - apontou para um dos rasgos. - Isso é muito difícil de consertar. Ok, parece que eu sou uma médica examinando uma vítima de um grave acidente, pode rir. - ela deu de ombros e logo guardou o vestido novamente. - Demetria, você já pensou em solicitar o conserto dele? 
- Hm... Eu não sei. - respondi um pouco incerta, sabendo que no fundo era o que eu mais queria. - Existe o conserto? - não havia como negar, a insegurança por estar entregando algo de um enorme valor sentimental para alguém que eu conhecia minimamente se fez presente, mas ela entendia do assunto, certo? Então, por que não tentar? 
- Não posso garantir nada. Seria errado prometer uma coisa que posso nem vir a cumprir... - seus olhos fitaram o nada, e por um instante pareceu que ela não falava do conserto de um vestido, talvez de algum dano pior. - Se você confiar em mim, eu posso levá-lo e ver o que pode ser feito. Mas já deixo claro que não moro aqui, moro em Nova York, então... - percebi o motivo da ausência de sotaque. 
- Tudo bem, pode levar! Mas, se você sumir com o meu vestido, prepare-se para uma busca implacável! - a alertei de bom humor, a assistindo erguer os braços como quem se rende. O som da porta se abrindo novamente fez com que nós duas olhássemos para frente. Joseph surgiu, retirando o fone de apenas um ouvido enquanto falava ao celular. A menção do nome “Dominic” pareceu fazer com que Jennifer se levantasse em um impulso, deixando a caixa com o vestido cair. A ajudei a recuperá-la e tentei entender o que acontecia de errado. - O que houve? Quer beber alguma coisa? Você está pálida. 
- Não, de forma alguma. Eu já vou, nos falamos em breve, Demetria. Obrigada pelo endereço e até mais! Seu bebê está em boas mãos! Tchauzinho! - então passou como um vulto pela porta,Joseph até me olhou confusamente e eu apenas devolvi o olhar. O importante era que meu precioso vestido vermelho tinha uma considerável chance de voltar a vida. Meu marido encerrou a ligação e veio para perto com um sorriso cansado, algo em seu semblante entregasse que ele provavelmente tinha corrido demais e estava cansado. 
- É impressão minha ou alguém por aqui necessita de minhas habilidades de massagista? 


Continuei a fingir que uma pequena pena de travesseiro presa por entre alguns fios de meu cabelo não estava ali, então apenas olhei para frente e deduzi que todo aquele silêncio só poderia significar uma coisa: a hora do ataque estava próxima! Segurei meu travesseiro com força, me dirigindo até um dos corredores, olhando para todos os lados. Um pouco sem fôlego, me abaixei próxima de uma parede quando ouvi o som de passos. Certo, eu não tinha idade para uma guerra de travesseiros, mas quem disse que me importava com esse fato? 
Antes de pensar ou respirar outra vez, ouvi a voz de Jamie berrar algo atrás de mim, então tive apenas tempo de me virar e jogar o corpo para trás quando ele tentou me presentear com outra travesseirada. Rindo dele por não ter conseguido me acertar, obriguei minhas pernas e me levantar e fui para perto do garoto, o atacando sem medir consequências. Outras penas já começavam a soltar dos travesseiros, e provavelmente nos derrubamos algum vaso ou enfeite enquanto passávamos correndo pela sala. Sim, ali estava, cacos do que um dia fora um vaso de flores. Eu não me lembrava de como aquela brincadeira tinha se iniciado, mas vários minutos depois lá estávamos nós, rindo como dois loucos. Descabelada, com as roupas amassadas e a barriga dolorida de tanto gargalhar, voltei a me esconder atrás de um dos sofás quando meu filho sumiu novamente. Pega de surpresa, senti alguém fixar as duas mãos nas minhas costas e me puxar para trás. O som da voz de Jamie novamente se vangloriando por ter conseguido me alcançar só fazia com que eu risse mais e mais. Soltei-me dele, dando-lhe uma travesseirada na cabeça, então corri para perto da porta, em posição de ataque mesmo, como se estivesse em uma guerra genuína. Preparei-me para desviar do travesseiro quando já conseguia vê-lo voando pelo ar e se aproximando cada vez mais. Abaixei-me e constatei o som da porta se abrindo. Tudo fora muito rápido. O travesseiro realmente atingiu alguma coisa, mas levantei o rosto e percebi que não tinha sido o meu corpo. Jamie estava praticamente deitado no sofá, gargalhando alto demais. Levantei-me lentamente e percebi que a vítima era Joseph, que olhava para nós dois sem entender nada após ter levado uma bela travesseirada. Afastei-me dele aos risinhos quando a expressão em seu rosto revelou que queria revanche. 
Fui para perto de Jamie, tentando me esconder, mas o mesmo voltou a segurar seu travesseiro. Os dois teriam me deixado coberta de penas se não fosse por Nancy, que surgiu no cômodo olhando confusa para a nossa situação. Provavelmente se perguntava se éramos um casal com seu filho mais velho ou um trio de irmãos superativos que aproveitam a ausência dos pais na casa. 
Minha empregada se aproximou e prontamente estendeu um envelope que alegou ter sido entregue pelo correio. Pedi que Joseph e Jamie parassem de tentar me atacar e me afastei um pouco dos dois, que desistiram de mim e decidiram por ir à piscina. Sim, de manhã estava frio, mas um gentil sol trouxe um clima agradável durante o período da tarde. Lentamente puxei a parte de cima do envelope branco com detalhes dourados e o abri, percebendo que se tratava de algum convite. O material do mesmo era delicado e ainda assim requintado. Todas as palavras eram escritas em tons dourados. Não demorei em reconhecer os dois nomes que formavam aquele bonito convite de casamento. Então tinha mesmo dado certo? Eu sorri sozinha, lendo e relendo as palavras algumas vezes. Cameron e Lexi se casariam! Levantei-me aos pulos e fui procurar por Joseph, determinada a contar a novidade o quanto antes. Sabia que, provavelmente, ele excluiria a possibilidade de irmos à cerimônia, mas não custava nada informá-lo, não é? 
Joe? - chamei ao passar pela porta de vidro da cozinha, o avistando juntamente com Jamie no jardim. - Joe, tenho algo para lhe mostrar. - apertei os passos em sua direção, e o assistindo me observar curioso lhe entreguei o convite. Meu marido o leu por segundos e depois ergueu o rosto para me olhar. Não disse nada, sua expressão permaneceu a mesma. Mas indícios de um sorriso ameaçaram surgir em sua face. 
- Você quer ir, Demetria? - por que ele tinha que colocar as decisões mais difíceis sob minha responsabilidade? Ok, não era uma decisão difícil, mas eu sabia como ele se sentia quando o assunto era Cameron, então era melhor ter cuidado. Na verdade, eu pensava mais em Lexi naquele momento. 
- Eu não sei... Mas a Lexi gostaria da nossa presença por lá. 
- Então nós vamos. - ele respondeu determinado, voltando a me entregar o convite enquanto retirava sua camisa para entrar na piscina. O olhei estática por segundos, prestes a comemorar. 
- Isso é sério? - perguntei com os olhos brilhantes, já pensando em que vestido usaria. 
- Sim. - concordou, fazendo um carinho terno em meu rosto. Até que seus olhos abandonaram o aspecto amoroso e adotaram um aspecto sedutor. - Pelo menos terei uma desculpa para dançar com você e, consequentemente, sussurrar coisas no seu ouvido a noite toda. 
Sorri-lhe, gostando absurdamente de como as palavras soaram, então olhei apressada para meu relógio e percebi que já era quase hora de começar a aula com Stella, a única de minhas alunas que estudava na mesma classe de Jamie. E o garoto pareceu um pouco ansioso quando comentei isso com Joseph, já que saiu correndo e pulou na piscina sem nem mesmo retirar a camiseta. Deixei os dois por ali e voltei para a parte da frente da casa aos risinhos. Matt fazia o soninho da tarde, então eu poderia desfrutar de um pouco de tranquilidade enquanto esperava minha aluna.

Joseph's P.O.V

Jamie bateu os braços com força na água, o que ocasionou uma onda que me atingiu antes que eu pudesse mergulhar e me afastar para fugir dela. Rindo, ele se escondeu quando ameacei retribuir seu gesto, mas depois ficou me olhando como se quisesse perguntar algo. Eu queria poder pegar Matthew e levá-lo para a piscina conosco, mas Demetria foi categórica ao ordenar que ninguém ousasse atrapalhar o sono do bebê. E o que eu poderia fazer a não ser concordar? 
Por mais que eu tentasse recusar, ela tinha muito poder sobre mim. Eu faria o que ela pedisse, sem pensar duas vezes. Mas Demetria não precisava ter conhecimento pleno disso o tempo todo, então na maioria dos casos eu a deixava encabulada com meus olhares e ações, tais como puxá-la certeiramente pela cintura e em seguida lhe lançar um olhar fervoroso; não encerrar algum momento quente mesmo quando ela pedisse com a voz suplicante para parar. Sabe, aquela voz que pede uma coisa, mas no fundo quer outra. Quer que o ato continue, apenas está fazendo charme, de propósito, porque sabe que isso atiça ainda mais um homem a perder o controle. Entre outras coisas. Coisas típicas de uma mulher... E eu nem tento entender, apenas aprecio, porque me fascina. 
Eu tinha um apreço por demonstrar gestos que a faziam acreditar que eu sou quem está sempre no controle, por mais que nossa batalha para ver quem ficava por cima fosse mais divertida do que perigosa. No entanto, ela sempre sabia muito bem o que fazer. Os olhos, aqueles olhos cruéis de tão lindos, sempre conseguiam oscilar entre delicados e selvagens. Ao mesmo tempo em que deixava a fragilidade exposta, deixava claro que era ela quem mandava. E ceder era fácil, muito mais do que fácil, principalmente quando Demetria me surpreendia com aqueles sorrisos espertos, falando com a voz mansa perto do meu ouvido, sorrateiramente passando suas mãos macias pela minha nuca, vez ou outra puxando alguns fios de cabelo ou arranhando minhas costas. Eu sentia arrepios só de imaginar. Como resistir sendo um mero mortal? 
Antes que eu pudesse perceber, já estava carregando ela nos braços sem motivos aparentes, simplesmente para fazê-la rir nervosamente com medo de cair e depois ficar se sentindo uma rainha. Antes que eu pudesse perceber, já atendia suas necessidades e ordens, todas elas, mesmo que alguma consistisse em ir ao outro lado do mundo buscar qualquer coisa trivial. Ela merecia o melhor, sem dúvida alguma. Então, o que eu pudesse fazer por aquela mulher, faria. E talvez até o que eu não pudesse, insistiria em tentar fazer. 
Eu estava condenado a tudo aquilo pelo resto da vida... E não poderia estar mais feliz com isso, diga-se de passagem. 
Seus olhos capazes de uma potente hipnose me forçavam a ceder, o cheiro do seu cabelo parecia sempre renovado, atingia meu olfato fortemente e em consequência bagunçava com os outros sentidos, então ficava mais difícil resistir. Ela era quente, e antes que acusem que só sei pensar com a cabeça de baixo, afirmo que não é a esse tipo de calor que estou me referindo. Certo, talvez esteja me referindo a ambos. Mas falo do calor do corpo dela, o calor que sinto quando ela se aborrece com algo e vem toda carente me abraçar, por exemplo. Eu não sei como ela consegue, mas seu corpo se mantém quente até mesmo no maldito inverno europeu. 
Eu tinha um ser impulsivo, mandão, altruísta, sedutor, carinhoso, divertido, cheiroso e apaixonante para chamar de meu. Sorte? Mais do que isso. 
Demetria é uma mulher de se orgulhar. Já passara por tanto, mas nada conseguiu derrubá-la. Eu não poderia ter escolhido alguém melhor para construir toda uma vida. E uma das melhores partes era perceber que ela realmente não se importava com determinadas coisas. Como a parte financeira, por exemplo. Obviamente gostava de ganhar presentes, de passar horas dentro de lojas e mais lojas - torturante demais para um homem -, mas Demi também ficava feliz com coisas tão pequenas, como se nenhum dinheiro no mundo pudesse lhe proporcionar algo maior. E como ela sabia cuidar tão bem de um bebê, sem nem mesmo ter recebido grande ajuda? Fora assim desde os primeiros dias após o nascimento de Matthew. Era como se ela tivesse o instinto próprio para isso, e conseguisse fazer sempre a coisa certa. Eu não sabia o que aquela mulher tinha, mas bastava pegar nosso filho em seu colo para que o mesmo parasse de chorar no exato instante. 
E como era possível ficar mais linda e sexy a cada dia que se passava? Eu me via cada vez mais deslumbrado. 
Demetria tinha vários sorrisos diferentes. O meu preferido era o de quando ela se encontrava feliz, tão feliz que não se importava com nada de negativo ao seu redor, não se importava com o que pensavam dela. Sua felicidade era assombrosamente contagiante. 
Eu gostaria de tê-la conhecido muito antes do que conheci, gostaria de ter sido o primeiro que fez seu coração bater mais depressa. Gostaria que ela tivesse sido a primeira mulher em minha vida. Sim, no sentido pervertido de dizer. Se bem que, parando para pensar, foi melhor ela ter surgido em meu caminho quando eu já tinha certo conhecimento do mundo. Graças a isso, pude constatar que em lugar algum existiria alguém como ela. Simplesmente seria impossível compará-la com qualquer outra. Uma vez se prova da perfeição, todo o restante perde o sabor. E eu sinceramente não pretendo tentar restabelecer o sabor do mundo, desde que continue tendo o dela. Ela é a minha vida. 
- Pai? Em que mundo você se perdeu? Pai! - saí daquele redemoinho de pensamentos quando percebi que Jamie me chamava desesperado, já jogando água em mim novamente. Mas dessa vez eu não me controlei e fiz o mesmo, até que começamos uma guerra de água. - Espera, espera, eu preciso te falar uma coisa... Pai, é importante! - ele gargalhou e mergulhou, a fim de tentar se proteger. Parei com a criancice e esperei até que meu filho emergisse, lhe dizendo que poderia falar o que quisesse. Nos encostamos na beirada da piscina e pegamos os copos com alguma bebida gelada. - Estou passando por um terrível dilema. - ele começou, com o cenho franzido como se realmente fosse algo grave. Fingi não querer rir e adotei uma expressão séria, digna de deixar claro que eu estaria ali não importasse a gravidade do assunto. 
- Onze anos e já tem dilemas na vida, Jamie? - o garoto me olhou bravo quanto notou o riso que eu tentava segurar. - Certo, pode dizer. 
- É uma garota... 
- Eu sabia! - exclamei convencido. 
- Pai! - ele me repreendeu, então voltei a beber seja lá o que tinha naquele copo, provavelmente refrigerante, e deixei que continuasse a falar. - Amanhã é a festa de Halloween do colégio, e eu não sei por que os organizadores tiveram a brilhante ideia de fazer uma festa em que os alunos só podem entrar se estiverem acompanhados. - Jamie olhava para a água enquanto falava, visivelmente aborrecido. Sorri orgulhoso, é claro. Um pai aguarda ansioso por momentos assim. - Eu pensei em chamar uma garota da minha classe, mas ela é tão... 
- Complicada? - arrisquei, vendo que ele concordou exageradamente com a cabeça. 
- Exatamente, ela é muito complicada. E eu acho uma coisa errada a se fazer, porque, bem... Tem a Olivia, você se lembra? 
- Mas a Olivia não está aqui, Jamie. 
- Você levaria outra garota ao baile se a mamãe não estivesse por perto? 
Engoli em seco, percebendo a burrada que tinha dito a ele. Não se pode simplesmente dizer a um garoto pré-adolescente que, quando a garota que ele gosta não está por perto, ele deve ignorar isso e ir atrás de outra. Que tipo de pai eu estava sendo? 
- Certo, vamos reformular isso. - tentei, na esperança se consertar o erro. - Não é como se você estivesse convicto de que vai casar com essa garota que quer convidar, e a minha situação com a sua mãe é muito diferente, filho. Mas, se quer saber... Eu gostaria de ter tido a oportunidade de convidá-la para uma festa do colégio. - Jamie sorriu sem mostrar os dentes e ficou apenas brincando com as mãos pela água. 
- A Olivia pode não voltar, não é? E se ela não voltar, vai ficar claro que nunca gostou de mim de verdade. Posso me divertir com outras antes dela se decidir, certo? - cobri a boca para não rir outra vez, torcendo para que Demetria não aparecesse ali naquele momento. Provavelmente lhe daria um sermão, argumentaria que não se pode simplesmente usar garotas. Se bem que Jamie ainda era novo para pensar dessa forma machista, e eu sabia que ele não seria um adolescente babaca e desprezível como eu fui, isso era mais do que evidente. 
- Qual é a nome da garota? - indaguei, erguendo uma sobrancelha. 
- É Stella. - ele continuava fugindo da animação, e eu não entendia o porquê. 
- Stella? Por acaso a Stella que nos referimos é a mesma que está do outro lado do jardim aprendendo a tocar piano com a sua mãe? 
- Er... Talvez. - Jamie me olhou envergonhado, fitando um ponto do jardim e arregalando os olhos. - Me esconde, me esconde, ela está vindo! - o garoto tentou puxar meu braço e afundou a cabeça na água. Olhei para o lado e constatei que minha mulher e a garota de nome Stella vinham caminhando e conversando até a direção da piscina. Tentei puxar Jamie para cima e lhe aconselhar “seja homem!”, mas o mesmo já tinha saído de perto e nadava para o outro lado. 
- Oi, senhor Joseph. - a garota disse educada, e eu apenas sorri com um aceno de cabeça, determinado a trazer meu filho para perto. Não, ele não fugiria de uma garota de forma alguma. Não é assim que pretendo educar meus filhos. 
- Cadê o Jamie? - Demetria perguntou interessada, olhando para todas as direções da piscina. 
- Encontrei. - mergulhei determinado ao enxergar um vulto embaixo da água, trazendo Jamie para a superfície novamente. Ele relutou antes de se revelar completamente e sair da piscina, olhando para Stella como se ela fosse uma assombração. 
- Tudo bem com você, filho? - Demi perguntou ao enxergar a expressão assustada de nosso filho, que apenas concordou com a cabeça e se aproximou de Stella para cumprimentá-la com um beijo no rosto. Eu e Demetria nos entreolhamos e fingimos que não tínhamos acabado de sorrir maliciosamente. 
Jamie olhou para nós dois como se tentasse dizer algo, deixando claro que não pediria para levar Stella a festa se estivéssemos por perto para supervisionar. Demi logo notou que indiretamente nosso filho pedia para ficar sozinho com ela e se despediu da garota, indo para dentro de casa aos risos. 
- Esqueçam que estou aqui. - comuniquei aos dois antes de submergir. 
Quando voltei a superfície, vários segundos depois, meu filho estava sozinho, pronto para entrar na água novamente. 
- Ela aceitou! - em forma de comemoração, ele se lançou na piscina com força, causando um impacto certeiro que voltou a formar várias ondas. Demi saiu para o jardim novamente, procurando curiosa pelo filho. É claro que ela queria os detalhes. 
- Jamie, vem aqui! - sentou-se na beirada da piscina e ficou com apenas os pés dentro da água. Olhou séria para mim, que correspondi com um semblante inocente. A mulher colocou o cabelo atrás da orelha, pronta para dar as ordens: - Se alguém sequer pensar em me puxar para dentro da piscina, teremos consequências muito, muito graves! Então, não façam isso. - meu filho e eu nos entreolhamos cúmplices, mas concordando com a cabeça como se acatássemos àquela ordem. 
- Mãe, você pode me ajudar com uma coisa? - Jamie apoiou as duas mãos na beirada e impulsionou o corpo para cima, ficando sentado ao lado da mãe. 
- O que quiser, Jam. 
- Eu preciso aprender a dançar, me ensina? 
- Nós ensinamos! - imitei os movimentos dele e saí da água, me levantando e fazendo com que Demetria se levantasse. - Vem aqui, Demi. - atingida pelos pingos de água que escapavam do meu corpo coberto apenas por uma bermuda, ela fechou os olhos e fingiu não que não queria rir enquanto resmungava. 
- Você vai me molhar, Joseph! - ela dizia em alto e bom som, tentando se soltar enquanto eu me esforçava para trazê-la para mais perto, na tentativa se juntar nossos corpos em uma posição que pudesse exemplificar a Jamie como uma dança deveria ser. 
- Você gostou das outras vezes. - sussurrei ao pé de seu ouvido discretamente, apenas para ela ouvir. Demetria bufou e se deu por vencida, passando um dos braços pelo meu ombro sem se importar com a água que já tinha molhado boa parte de seu corpo. Passei minha mão por sua cintura e a trouxe ainda mais para perto, se é que era possível, colando nossos narizes. Nossas mãos livres se ergueram até um pouco abaixo dos ombros, juntando-se enquanto nossos dedos se entrelaçavam. Jamie nos olhava com uma sobrancelha arqueada. 
- Nós nem sabemos se a dança que ele está se referindo é essa, Joe. - Demi alertou, olhando para o garoto e lhe perguntando o que precisamente queria aprender. 
- Mas ele precisa saber a forma como deve segurar uma garota na hora da dança, Demetria. Não pode tratá-la de qualquer jeito. 
- Certo, certo, senhor galante. Então me mostre o que sabe fazer. - ela ergueu o queixo, me lançando um olhar potente, destemido. Ao receber aquela provocação de minha mulher, rapidamente soltei minha mão de sua cintura e a fiz girar no ar, capturando seu corpo no instante em que voltou a ficar de frente para o meu. Eu notava que ela estava com medo de escorregar e cair na piscina, então puxei nossos corpos para um pouco mais longe. - Jamie, quando o pé direito dela for para trás, o seu tem que ir para frente. - ela instruía o filho, enquanto me obrigava a realizar os movimentos que citava. - O mesmo você fará com o esquerdo. E cuidado para não pisar nos pés dela! - nosso filho fez uma careca ao pensar na possibilidade. - Não aperte muito a cintura... O seu pai aperta a minha, mas só porque ele sabe que isso não me aborrece. Muito pelo contrário. - Demetria sorriu exclusivamente para mim, deixando claro que gostaria de ser segurada com um pouco mais de determinação. - Mantenha o contato visual, mas não a faça se sentir pressionada ou constrangida. E não a beije se não enxergar nos olhos dela que o interesse é mútuo. 
- Não, pode parar por aí. - encerrei nossos movimentos, olhando seriamente de um para o outro. - Como assim não beijar? Ele é um garoto, Demetria, não vai enxergar nada nos olhos dela. 
Eu poderia ter ficado sem aquele tapa empenhado que recebi no braço. 
- Não dê ouvidos ao seu pai. - Demi cruzou os braços, rolando os olhos em minha direção. Já mencionei que deixá-la irritada ou provocá-la é um dos meus objetivos de vida? 
- Não dê ouvidos a sua mãe, Jam! - também cruzei os braços, a imitando de propósito e conseguindo arrancar uma expressão contrariada dela, que suspirou e voltou a ajeitar o cabelo, incomodada com nossa divergência de ideias. - Como se eu não soubesse conquistar uma mulher. Não é, Demi? Diga-me... - olhei fundo em seus olhos, e ela deixou de se mover para prestar atenção nos meus movimentos seguintes. - Por acaso fiz algo errado na hora de te conquistar? - ela não conseguiu segurar um sorriso. - Aí está a resposta. 
- Ei, vocês dois! Eu quero aprender a dançar com uma garota, e não a fazer bebês, ok? - Jamie salientou com a voz enojada quando notou o clima entre seus pais, o que ocasionou um ataque de risos em ambos de nós. Nosso filho balançou a cabeça e os braços, querendo encerrar aquilo. - E quer saber? Eu acho que já aprendi, não preciso de mais lições. Obrigado pai, obrigado mãe! - saiu correndo e entrou na casa, deixando um rastro de água por onda passava. 
Demetria demorou a perceber que eu a fitava minuciosamente, e nós continuávamos juntos como se ainda estivéssemos prestes a iniciar uma dança. Logo ela capturou minhas intenções através dos meus olhos, e tentou se afastar um pouco, mas não deixava de manter seus olhos concentrados nos meus. Parecia que ela tentava ler minha mente. 
- Quem foi que te disse que não é possível enxergar intenções nos olhos dos outros? - sua voz soou provocante e tive que segurar meu lábio inferior com os dentes, na intenção de me controlar e não fazer isso com o dela. 
- Consegue enxergar as minhas? - soltei uma de suas mãos para que pudesse segurar a cintura fina com as minhas duas. Ao roçar minha boca em seu pescoço cheiroso, sorri satisfeito por ter conseguido lhe proporcionar um arrepio. 
- Claramente. - sua face carregava ingenuidade e convicção ao mesmo tempo. Droga, mulher, pare com isso. 
- Algo me diz que temos um pequeno equívoco por aqui... 
Foi rápido. Seus olhos se arregalaram, joguei meu corpo para trás enquanto puxava o dela para a mesma direção. Demetria gritou estridente quando nossos corpos caíram na água, mas não tentou se vingar ou me repreender, apenas começou a rir e encostou-se à um dos apoios da piscina, enquanto trocávamos um sorriso. Um tipo raro e duradouro de sorriso, um que funciona como uma espécie de troca de memórias, compartilhamento de momentos. Sem dizer nada, nenhuma mísera palavra, ambos sabíamos o que o outro tentava dizer ou sentia. Eu comuniquei a Jamie que ele não conseguiria ler o que os olhos de uma garota tentariam lhe dizer, mas sabia que estava equivocado, pois naquele momento, sim, era capaz de enxergar o que os olhos da mulher a minha frente tentavam transmitir. Demi voltou a sorrir delicada e encolheu os ombros ao virar o rosto, como se, envergonhada, pedisse para deixar de ser admirada, afervorando minha vontade de liquidar a distância. Ela estava estonteante, como sempre, por dentro e principalmente por fora. Provavelmente minhas ações e olhar entregavam que eu era um homem perdido pelas garras e encanto de uma mulher, mas se existir algo melhor do que isso no mundo, favor me avisar. Exato, impossível. 

/Joseph's P.O.V


Minha respiração embaçou o vidro da janela, enquanto eu afastava parte das cortinas com a mão para que pudesse apenas observar crianças que corriam fantasiadas e com baldes cheios de doces. Era Halloween, Jamie provavelmente estava com as bochechas coradas naquele exato momento, tentando não pisar no pé de Stella enquanto dançavam desengonçadamente pelo ginásio do colégio onde estudavam. Joseph tivera um jantar de negócios em um restaurante no centro, e aproveitei para levar meu bebê conosco. Como era de se esperar, não me arrependi, pois a esposa do outro empresário também levara o seu. Era uma adorável bebezinha de cabelos ruivos. E os dois se gostaram, tanto é que passaram todo o tempo brincando e tentando conversar entre si. 
O vestido Valentino continuava cobrindo minhas curvas e a vontade de tirá-lo era gritante, por mais que eu já estivesse sonolenta o suficiente para aceitar de bom grado adormecer com o mesmo em meu corpo. Graças ao vidro embaçado, consegui enxergar Joseph que se aproximava por trás com uma tentadora garrafa de vinho. Sentindo um beijo entre meu pescoço e ombro, virei-me para encará-lo, extremamente próximo de mim. Atingia níveis surreais de beleza e virilidade, tão perfumado e elegante em suas roupas Emporio Armani. Meus globos oculares se deleitaram com a imagem. Até que os abaixei, fitando a garrafa de vinho segurada firmemente por uma de suas mãos grandes e quentes. Fora o momento em que tive a possibilidade de enxergar as veias em suas mãos e braços levemente salientes, expostas devido ao seu gesto de elevar as mangas até os cotovelos minutos antes. Era uma característica sexy. Sabíamos que era um pouco cedo, e Matthew permanecia acordado brincando em seu quarto, logo não poderíamos sequer pensar em usar a cama para atos mais divertidos do que simplesmente dormir. Como se compartilhássemos esse mesmo pensamento, ambos olhamos cúmplices para a porta, concordando que seria melhor limpar malícias da mente e pensar em algo mais... Leve. E já que éramos extremamente apaixonados pela sétima arte, tempos depois já nos víamos entretidos com o início de uma maratona com os filmes do Al Pacino. O favorito de Joe era The Devil's Advocate e o meu Scent of a Woman. Era esse último que víamos, e a imagem na tela da grande tela presa à parede permanecia pausada justamente no início da aclamada cena de tango
Joseph umedeceu os lábios, lançando-me aquele sorrisinho apaixonadamente enviesado, enquanto fazíamos uma pausa dos filmes para conversar despreocupadamente, e para que ele pudesse abrir o vinho. Meu marido se manteve concentrado, e eu apenas me permiti examinar suas feições. Os cabelos parcialmente arrumados, com alguns fios que caiam pela testa, os olhos verdes intensos focados em seu objetivo e os lábios que se torceram assim que conseguiu abrir a garrafa. Aproveitando-se de minhas coxas perigosamente descobertas, ele roçou a bebida na superfície de uma delas, causando-me um arrepio. Serviu-me e depois serviu a si em uma taça em taças de cristal, enquanto permanecíamos sentados em um dos cantos do quarto, próximos da janela que nos presenteava com uma agradável brisa. O clima tenebroso do Halloween passava longe de nossa casa naquele ano. Senti meu rosto enrubescer e esquentar quando, após tomar quase metade do conteúdo em sua taça, Joseph começou a brincar com o zíper de meu vestido. O que acabou sendo útil, já que o mesmo começava a me incomodar. 
- Abre para mim? - pedi com a voz terna, virando-me mais para que ele conseguisse puxar o zíper. Após receber um beijo quente em minhas costas, sorri-lhe agradecida, livrando-me do tecido e caminhando com apenas uma calcinha rendada protegendo meu corpo. Deixei meus sapatos Jimmy Choo em um canto qualquer e adentrei o closet, optando por colocar uma camisola preta de seda. Delicada e até que comportada. Voltando para o quarto enquanto soltava meus cabelos e os deixava cair em cascatas por minhas costas, não pude deixar de apreciar o homem encostado à parede e de braços cruzados, olhos que tem a capacidade de mover montanhas. Ou mover minhas emoções diretamente para a insanidade. Desgrudando-se da parede, caminhou até mim. Joseph deliberadamente fez com que nossos corpos se chocassem, aquele tipo de choque em que minhas mãos se espalmam em seu peitoral definido e as suas seguram minha cintura. Sua região pélvica encostou-se à minha, e sem medir meus atos acabei por impulsionar meus quadris para frente e provocar uma leve fricção. Afinal de contas, por que não conseguimos nos controlar perto um do outro? Não éramos um casal fogoso de namorados adolescentes que acabaram de perder a virgindade juntos, sedentos por mais e mais; éramos adultos conscientes de que isso não pode ser feito a toda hora e em todo lugar. Sabíamos quando era o momento certo e... 
Minha linha de raciocínio desapareceu assim que senti dedos perversos decididos a distribuir toques pelo interior de minhas coxas. Seus lábios roçaram nos meus, permitindo-me sentir sua língua quente pedir passagem. Fingi ceder, mordendo seu lábio inferior quando ele tentou avançar o sinal. 
Joseph, pare com isso! Não é hora. - pedi baixinho, apesar da voz aveludada que soava bem aos seus ouvidos, fingindo estar encabulada. Ele riu divertido, desvendando a falsidade de meu incomodo. 
- Eu sei que você quer. 
- Quero, claro, mas não é hora. Vamos, me solte e vá tomar um banho frio. 
- Sozinho, meu amor? - Joe negou com a cabeça e segurou o lábio inferior com os dentes. 
- Não funciona se eu estiver junto, homem. Vamos, me solte, você tem um filho que não pode nos encontrar nessa situação. 
- Nosso filho é um bebê incrível exatamente porque o fizemos com muito... - ergueu os olhos para procurar a palavra que julgou ser adequada. - Esmero. - concluiu satisfeito, desviando totalmente do assunto anterior, arrancando um risinho meu. - E eu quero outro, o que me diz? - arregalei brevemente os olhos, simplesmente adorando a forma como estava atrevido naquela noite. Joseph quando atrevido não é apenas um pedaço de mal caminho, mas todos os pedaços disponíveis. 
- Eu e meu útero veremos o que podemos fazer por você. Agora chega, quero ver o filme. - coloquei um ponto final ao assunto, fazendo um beicinho que certamente o convenceu a atender meu pedido, mas mesmo assim consciente de que, para ele, negar era o mesmo que incitar. Tentei me afastar, mas senti seus dedos em carícias até o osso de meu quadril, enquanto a outra mão prendia minha cintura em um enlace. 
- Não foge, não, mulher, vem aqui. - depois, ainda convencido de que poderia atiçar mais, olhou descarado para minhas pernas descobertas no instante em que me afastei minimamente. 
- Fugir? De você? - passei a língua por meus lábios, quase desistindo de bancar a difícil. - Só se for para ser capturada logo depois, se é que me entende. 
- E se eu disser que não entendo, você vai me explicar? - desafiou seguro de si. 
- Eu explico, mostro, exemplifico e faço o que você quiser, mas shhh... - toquei seus lábios com meu dedo indicador quando ele ameaçou abrir a boca para falar. - Não agora. Então se comporte. - aproveitei seus olhos distraídos em meus lábios e tomei-lhe o controle da televisão para dar play no filme novamente, me aconchegando em um emaranhado de almofadas no chão. 
- O que eu quiser? E se um caprichado striptease, um especial Kamasutra e algumas fantasias envolvendo piscinas e estacionamentos estiverem na lista de coisas que eu quero? - recebi um sorrisinho repleto de segundas intenções, o devolvendo com terceiras. 
- Estou disposta a acertar os detalhes minuciosamente, mas, como já dito, não agora. E se prepare para quando a minha vontade de passar dos limites aflorar tanto ou mais que a sua. Meu amor, esse quarto será pequeno demais para o que vai acontecer. - pisquei os olhos charmosamente, o deixando atônito com minha declaração. Olhos verdes brilhando em surpresa e luxúria presos a mim. 
- Minha esposa é perigosa! - exclamou eufórico e sedutor ao mesmo tempo. Eu não sei como ele consegue misturar as coisas desse jeito. 
- Você é quem está dizendo, senhor Jonas. 
Voltei a prender minha atenção na tela como se tivesse acabado de dizer a coisa mais pura do universo. Era sem dúvidas uma das minhas cenas favoritas. Tão encantador e emocionante ver a bela moça dançando com um homem cego, e ainda mais belo era perceber que o fato de não ter visão para o mundo não o impedia de aproveitar as boas coisas da vida. O semblante brando deJoe enquanto ele fitava a tela se desfez, e um olhar intenso adornou sua expressão serena. Ele se levantou enquanto a dança continuava a se desenvolver na tela, estendendo de forma galante sua mão para que eu a segurasse e pegasse impulso para levantar. Ao fazer isso, percebi o corte de cena, o aviso de que era tarde demais para tentarmos reproduzir os movimentos dos personagens enquanto os mesmos continuavam. Porém, tendo uma ideia, afastei-me de Joseph e fui até o aparelho de som colocado sobre uma das estantes com livros. 
(Coloque a primeira música para tocar!)
A música não se tratava de um tango, a melodia era mais leve, mas não vi problema algum. Dançar conforme a música não era a intenção. Voltei a ficar frente a frente com Joseph e passei meu braço pelo seu ombro largo, sentindo uma mão atrevida repousar em minha coxa e deslizar pela extensão. Meu marido estava um pouco apressado, eu diria. Segurou minha mão e tentou levar meu corpo para o lado, na tentativa de promover alguns passos desengonçados pelo tapete. 
- Isso está bem longe de se parecer com um tango. - levei uma perna para trás, olhando para as dele e esperando que fizesse o mesmo. Tombei delicadamente meu tronco, jogando levemente os quadris para um lado e aproximando nossos corpos, segurando firme nos cabelos de sua nuca. Joseph notou minha entrega em seus braços e jogou-me para frente ao soltar minha cintura, mas manteve o contato firme entre nossas mãos para poder me puxar de volta e colidir nossos corpos outra vez. Aquele era um movimento típico de um tango, então deduzi que meu marido tinha prestado atenção nessa parte do filme. 
- O importante não é a música em si, mas o que ela te faz sentir. - sentindo minha cintura ser enlaçada calorosamente, soltei um risinho e neguei com a cabeça, notando que, se quiséssemos dançar aquilo de forma correta, teríamos de ter aulas. Então, tudo se tornou apenas uma brincadeira. Diversão. As mãos enlaçadas e apontadas para frente, os rostos virados na mesma direção, bochecha com bochecha, enquanto rodopiávamos, ou andávamos para frente naquela posição e com passos harmoniosos, aparecer se ambos sermos leigos no que fazíamos. Sempre tentando não rir. Eu tomava a precaução de manter o equilíbrio, antes que Joe pisasse em meu pé ou ambos os corpos desabassem sobre a cama totalmente próxima enquanto dançávamos desimpedidos pelo carpete. Vezes ele me fazia rodopiar sozinha para capturar-me depois, outras segurava meu corpo, fazendo-me inclinar a cabeça para trás, e o levava para baixo ao inclinar o seu. Um pé tomando o lugar do outro no chão, meu ombro direito indo de encontro ao seu esquerdo em movimentos lentos e vice-versa. Eu arriscava dar alguns passos sedutores semelhantes ao tango propriamente dito, mas acabava por perder o equilíbrio e cair sentada no chão aos risos. Logo estávamos apenas nos balançando conforme a música que continuava a tocar, envolvidos pela calma imensurável do ambiente. 
- Pele macia. - ele dizia baixinho perto de meu ouvido enquanto seus dedos alisavam meu braço esquerdo. Em seguida, beijou minha testa na região da têmpora direita. 
Kick your shoes off and don't you fear. Bring that bottle over here, cause I'll be your baby tonight... - cantarolei, e suas íris verdes denunciavam o quanto ele gostava quando eu simplesmente começava a cantar sem motivos. - Me conte algo sobre você, algo que eu ainda não saiba. - desafiei, recebendo apenas uma sobrancelha erguida em resposta.
- Isso é possível? Eu duvido que exista algo sobre mim que você não saiba. - comentou desanimado, tentando acabar com a mágica do momento, mas eu era persistente. 
- Tente. - aconselhei decididamente. 
- Eu gosto muito de caminhar por praias vazias... Muito mesmo. 
- Eu sei. 
- Mas não sabe o porquê. - argumentou, me fazendo fechar os lábios em linha reta e sentir uma súbita e leve curiosidade. 
- Então me diga. 
- Quando eu tinha... - Joseph semicerrou os olhos para tentar se recordar com precisão. - Uns seis anos, minha mãe me levou até uma praia. E notando o quão animado eu estava com toda aquela paisagem, ela me chamou para que pudéssemos nos sentar à beira do mar. Lembro-me do sol estar se pondo, poucas pessoas caminhando pela areia... - ele olhava para o nada enquanto falava, como se fosse capaz de enxergar perfeitamente a cena. Sorria. - Então ela começou a dizer que não existe lugar mais reconfortante que uma praia vazia. - meu marido nem deveria notar que nós ainda continuávamos a nos movimentar. Eu prestava atenção em suas feições relaxadas, sem coragem de desviar o olhar. - Ela contou que quando era mais nova e queria pensar com clareza na resolução de um problema, pegava o carro e procurava pela praia mais próxima. O mar era uma das suas coisas favoritas em todo o mundo. Acho que herdei isso dela. - não gostei do sorriso seguinte, pois ele denunciava a lamúria. - É por isso que eu gosto de praias vazias. Lembro-me dela, parece que enquanto caminho pela areia, ela me acompanha. 
Era imensamente bom saber que ele tinha lembranças tão agradáveis da mãe, porém sempre ficava inquieto quando começava a falar da mesma. E isso gerava um clima pesado desproporcional à felicidade simples que deveríamos estar sentindo. A mescla de tristeza com saudade começou a formar uma solitária lágrima em um dos olhos do homem, que em silêncio afrouxou o aperto em minha cintura e fez menção de se afastar. Mas como um presente dos céus, algo imensamente bom apareceu para distraí-lo da nostalgia: nosso bebê parado à porta entreaberta do quarto, olhando incerto para nós e dando seus curtos passinhos. Joseph se esqueceu de problemas no exato instante, abrindo um sorriso largo e indo rápido na direção do pequeno para pegá-lo. 
- Não pegue ele, eu vou procurar a câmera! - pedi com a voz animada, vasculhando gavetas até que finalmente a encontrei. Liguei-a e já estava indo atrás do bebê, o seguindo onde quer que fosse para registrar seus passinhos. Ainda era emocionante, então não me condene pela empolgação tão repetitiva. Matthew ria enquanto ia de um lado para o outro do quarto, com seu pijama adorável de ursinhos. Seus passinhos eram um pouco tortos, às vezes ele perdia o equilíbrio e caia sentadinho, mas já tinha força e determinação o suficiente para se levantar sozinho e continuar seu trajeto. 
Demetria, quantos vídeos você já gravou? - Joseph questionou, achando graça do sorriso orgulhoso de mãe estampado em meu rosto enquanto eu tentava seguir o bebê. Parei brevemente a filmagem para fitar meu marido. 
- Ele ficou nove meses dentro de mim e agora está andando loucamente pela casa, Joe! - argumentei sorrindo bobamente, com ansiedade na voz. - Como espera que eu lide com isso? 
Tau! - terminando minha pergunta, ouvi aquela palavrinha confusa, provavelmente um “tchau” de meu bebê. Rindo, olhei para trás e percebi que tinha perdido o pequeno de vista. 
- Ei, príncipe da mamãe, volte aqui! - procurando com os olhos aflitos, logo o encontrei no corredor, com sede de explorar cada canto da casa pela primeira vez. 

Um pouco exausta por ficar perseguindo um bebê coberto de energias inesgotáveis, sentei-me no chão para recuperar o fôlego e verificar se as gravações tinham sido devidamente feitas. O som estridente do telefone no andar de baixo me fez suspirar desanimada, percebendo que teria de descer e atender, pois Nancy tinha ido embora mais cedo naquele dia por motivos pessoais, provavelmente algum problema com um de seus filhos. Depois de vários segundos em que briguei com a musculatura de minhas pernas para que cooperasse, pedi a Joseph que ficasse de olho em um Matthew andarilho que estava se aventurando por algum daqueles cômodos e desci as escadas com passos rápidos, segurando o aparelho e me estendendo sobre o sofá para atender. 
- Alô? - pedi com a voz baixa. 
Boa noite, represento o Saving Grace Children's Hospital, gostaria de falar com Demetria Jonas. - a voz feminina gentilmente informou, me levando a franzir o cenho e questionar mentalmente o que um hospital infantil poderia querer comigo à uma hora daquela, especialmente porque meus filhos não estavam com problemas de saúde e nem nada parecido. 
- É ela. 
Olá, Demetria, finalmente consegui lhe encontrar. - outra vez senti a confusão se alastrar. Onde ela tinha conseguido meu telefone? 
- Algum problema? - desencostei-me do sofá e inclinei meu corpo um pouco para frente, apoiando um dos cotovelos em meu joelho enquanto esperava já tensa por uma resposta. 
Sei que isso parece um pouco repentino, inesperado e provavelmente suspeito, mas sua presença está sendo solicitada em nosso hospital, localizado em Greenwich. Pedimos encarecidamente que compareça o quanto antes. 
- Eu não estou entendendo... Por que minha presença está sendo solicitada? - a mulher deve ter notado a confusão explícita em minha voz que aos poucos se elevava, e até consegui ouvi-la suspirar do outro lado da linha. 
Minha jovem, o nome Quentin Wright lhe parece familiar? - fui banhada pela escuridão ao fechar os olhos com força, os abrindo em seguida e tentando convencer minha mente de que não era plausível ter escutado o que escutei. 
- Sim. - escapou em um sussurro falho de meus lábios já trêmulos, assim como minhas mãos e pernas. 
O fato de que Quentin Wright, seu pai, lhe deixou uma herança é de seu conhecimento? 
- Eu... - vacilei, lembrando-me da conversa que tive com minha mãe há algum tempo. - Eu acho que sim. 
E você sabe que essa herança consiste em parte de um hospital infantil
- Não. - meus lábios crisparam, o corpo paralisou. 
Eu poderia ter largado aquele aparelho e soltado uma gargalhada alta. Poderia ter fingido que nada aconteceu e voltado para minha família no andar de cima, mas minhas pernas teimavam em continuar imóveis. Meu coração palpitava desenfreado, como se soubesse que aos poucos eu começaria a entrar em estado de desesperado com aquela revelação. Não sabia o que pensar, não encontrava um meio de organizar a bagunça instantânea que dominou confusamente minha mente. Talvez eu nem estivesse pensando no que fora dito, mas sim no que não fora dito. Sem vontade de ouvir mais nada, apertei o botão de encerrar a chamada e deixei o aparelho largado sobre o sofá. Subi pelas escadas em passos mecânicos, atônita e alheia a tudo ao meu redor. Abri a porta de meu quarto com força, assustando a Joseph que brincava com Matthew na cama. Ignorei ambos e entrei no closet, arrancando minha camisola e vestindo o primeiro jeans e blusa que encontrei, calçando também um par de sapatilhas qualquer. Voltando para o quarto, meu marido já estava de pé e me encarava preocupado. Olhei firme em seus olhos, mas ainda sem coragem para dizer nada. Talvez aquele fosse um estado de espanto desconhecido, quando você não sabe bem por que não quer acreditar em determinado fato, mas mesmo assim não consegue tirá-lo da mente. Algo dentro de mim doía. Doía muito, e a angústia repentina por não saber a origem verdadeira da dor era pior do que a dita cuja. 
- Cuide do Matt e vá buscar o Jam às dez, eu volto logo. 
Não lhe dei a chance de tentar me barrar e descobrir do que se tratava, pois logo já enxergava as escadas, a porta que me levaria para fora, o jardim e meu carro. Tudo em flashes embaçados devido as lágrimas que se formavam em meus olhos. Tranquei-me dentro do veículo e fechei os olhos, apoiando a testa no volante enquanto tentava acalmar minha respiração falha. Ouvindo o som da porta da frente se abrindo, revelando um Joseph exasperado pela minha atitude repentina, pisei fundo no acelerador e arranquei para longe dali, tendo a casa de minha mãe como destino. Ela tinha muito a explicar. 

(Coloque a segunda música para tocar!)
Devo ter perdido a noção do tempo enquanto dirigia, segurando todas aquelas lágrimas. Não é fácil, simplesmente não é fácil ter algo de proporção tão grande revelado de maneira tão descuidada. Eu não sabia o que me dava mais raiva. A revelação em si, o fato de que um monstro como aquele já fora dono de um hospital que cuida de inocentes, ou a omissão de minha mãe. Sim, ela me disse que o homem tinha - pelo menos uma vez na vida - pensado na filha e havia deixado algo para ela, mas jamais imaginei que a verdade seria entregue de forma tão absurda. Que a verdade em si fosse tão absurda. Ainda não tinha sido capaz de superar o fato de que jamais tive um pai presente, um pai de verdade. Para coisas assim não existe a opção de deixar cair no esquecimento, não é possível se livrar totalmente de memórias que não existiram, mas que você gostaria que existissem. Joseph se lamentava pela perda da mãe, e eu me lamentava por não conseguir sentir a mesma coisa a respeito daquele ser. Desejava que qualquer outro homem no mundo fosse o responsável pela minha vida, desde que tivesse pelo menos um pouco de amor no coração. 
Saí do carro e bati a porta com força, observando com olhos úmidos a fachada da casa de minha mãe. Corri pelo jardim e toquei a campainha três vezes ou mais, com desespero. Peter surgiu do lado de dentro, me olhando sem entender nada. Pressionei minha mão contra a madeira da porta e a empurrei para trás, entrando sem ser convidada. Parei no meio da sala de estar e encarei furiosamente meu irmão, mesmo sabendo que não era merecedor de fúria alguma. 
- Onde nossa mãe está? - tive apenas tempo de questionar antes que passos na escada atraíssem minha atenção o suficiente para que eu virasse meu corpo na direção exata. 
Demetria, o que está acontecendo? - minha mãe desceu o último degrau, olhando confusa para as lágrimas que já desciam desimpedidas e molhavam meu rosto. 
- Peter, nos deixe a sós, por favor. - pedi sem olhá-lo. Sem muitas opções, ele concordou com um aceno e subiu as escadas. Eu sabia que meu irmão era curioso o suficiente para ficar espreitando nossa conversa do andar de cima, mas realmente não era algo que me incomodava no momento. O incômodo era outro. 
- Sente-se, querida, eu vou preparar um chá para você. O que houve? Brigou com o Joseph? - ela apontava o sofá para que eu me sentasse, mas fui objetiva ao dar um passo a frente e negar com a cabeça. 
- Por que você não me disse? - minha mãe não percebeu de imediato do que eu falava, então cruzou os braços e ergueu as sobrancelhas. - Um hospital infantil? - então sua expressão ficou semelhante a minha quando descobri o fato. Comecei a caminhar de um lado para o outro do cômodo, enquanto, em silêncio, ele se sentou ao sofá, encarando o chão sem expressão. - Ele tinha mesmo que ter sérios problemas mentais, porque isso não faz sentido algum! - elevei o tom de minha voz, realmente não me importando com o que saia pelos meus lábios, não me importando se feria minha mãe com aquela estúpida falta de compreensão. - Eu não sou formada em medicina e nem tenho planos relacionados a isso, então por que algo assim seria deixado para mim? - a olhei, procurando uma resposta aliviante em seu olhar alarmado que me fitava. Havia pesar em sua expressão. - Responda-me, mãe! Silêncio, o insuportável silêncio. E eu não sabia o motivo de ainda ter tantas lágrimas querendo escapar de meus olhos. 
Quando você não sabe o que fazer, o desespero se aproveita. 
- Talvez para você constatar que existiu um outro lado de seu pai, um lado bom. - ela decidiu abrir a boca, dizendo algo que certamente não me agradou. - Ele era médicoDemetria... - suas mãos inquietas pressionavam os dedos umas das outras, e novamente ela abaixou o rosto, talvez arrependida por ter me escondido algo tão forte. - Ele salvou muitas vidas antes de começar a destruir outras. - meus joelhos tremeram, e eu temi que vacilassem, me obrigando a cair no chão. Desejei poder estar prestes a explodir de orgulho, a sentir meu coração bater feliz no peito. Ter um pai que salva vidas obviamente é um motivo para deixar um filho orgulhoso, mas era impossível. Era impossível porque não era da mesma pessoa que falávamos, não podia ser a mesma pessoa. - Sinto muito por ter escondido algo com esse grau de importância, mas... 
- Mas nada! - lá estava minha impulsividade causando estragos. - Nunca existiram segredos entre nós, sempre fomos melhores amigas mesmo com a distância, mãe. - cobri meu rosto com as duas mãos, dando-me por vencida e largando o corpo sentado no último degrau da escada branca. - Eu estava em casa, apenas tendo uma noite agradável com a minha família, então uma droga de telefonema surge e causa tudo isso. 
- Tudo isso o que, Demetria? - minha mãe negava com a cabeça, visivelmente triste pela minha reação. Mas como explicar a ela que algo me impedia de agir de outra forma? - O fato comprovado aqui é que você não consegue aceitar que aquele monstro já foi um ser humano altruísta, exatamente como você é agora. - ela estava de pé, se aproximando de mim com cautela. Senti seus dedos tocarem meu cabelo, mas desviei de seu contato e ergui o corpo, indo para o outro lado da sala. 
- Não existia nada de humano naquele ser, ele era apenas um monstro. Só isso. Não me peça para acreditar no que não existe, não sou uma menina ingênua. Um homem bom não mata o próprio filho, não importa qual seja o problema que enfrenta, o nível de insanidade que o castiga. Nada de bom pode ter sido feito por uma pessoa como aquela. - ignorei as palavras de Joseph em uma conversa anterior, quando ele disse que Arthur tinha, sim, feito coisas boas no mundo, e que eu era uma delas. Fechei os olhos com força - O que você sugere que eu faça, mãe? Sorria? Não posso. 
Minha mãe me deixou falando sozinha e se dirigiu até uma porta do outro lado, de onde retornou segundos depois segurado um jornal velho e amarelado. Sem dizer nada, ela o entregou em minhas mãos trêmulas e voltou a se sentar no sofá, esperando alguma reação de minha parte. Encarei hesitante a foto, pois reconheci imediatamente o dono daquele rosto. Meu pai. Mas ali ele parecia outro homem, não pela aparência, mas pela forma como um sorriso amigável estampava seu rosto. Era visível o jaleco branco que usava, mesmo com a qualidade da foto sendo tão precária. Um artigo citava suas ações mais do que caridosas e altruístas que beneficiaram centenas de crianças humildes, crianças que sofriam de doenças graves e precisavam de tratamentos médicos demorados e caríssimos, mas que, infelizmente, suas famílias não possuíam condições de arcar com tais procedimentos. Uma frase escrita ali fez meu coração voltar a bater de forma dolorida. 
Quantas vidas este homem salvou com suas ideias inovadoras e ações tão benevolentes? Com certeza foram muitas!” 
- Acha mesmo que eu teria amado a pessoa que ele era antes de morrer? - a voz de minha mãe cortou meu raciocínio, obrigando-me a desviar a atenção da página do jornal para encará-la nos olhos. - Você me ofende pensando dessa maneira. 
- Então por que ele teve que se transformar naquela... Coisa? - voltei a sentir as lágrimas provocarem a sensação de ardência nos olhos, tão vulnerável quanto uma garotinha. E o olhar que minha mãe me lançava era piedoso, fazia mesmo parecer que eu era uma. Uma inocente garotinha que chora com as injustiças da vida. 
Que mal é esse presente na humanidade que leva a bondade embora e corrompe o mais puro dos seres com a obscura maldade? 
Senti seus braços ao meu redor, e logo já havia encostado a cabeça em seu ombro, amassando as folhas que ainda segurava. Mamãe sussurrou em meu ouvido que eu não deveria chorar, que minhas lágrimas eram preciosas demais para serem desperdiças com algo que já não fazia mais diferença, com algo irreversível. 
- O homem que amei com todo o meu coração deixou de viver a partir do momento em que mudou de nome. - soltou-me, puxando-me para que ambas nos sentássemos no sofá. Acariciou meus cabelos outra vez e limpou uma lágrima solitária encalhada em minha bochecha. - O seu pai faleceu antes mesmo de ter a imagem manchada, minha filha. Arthur Sheppard não era nada para ambas de nós, não significava nada. Mas Quentin, sim. E, para mim, aquele homem deixou de viver muito antes de morrer. 
Mas as palavras dela não serviram de efeito calmante por muito tempo, a desconfiança ainda perambulava viva dentro de mim. 
- Será que não passa pela sua cabeça que ele poderia estar fingindo o tempo todo? - minhas palavras voltaram a feri-la, eu notei. 
- Você pensa em fingimento quando observa e aprecia o amor que Joseph demonstra sentir por você? 
- Não misture as situações. - ralhei com a voz firme, incomodada em excesso com a comparação feita. 
- Eu misturo, sim. - sua voz se tornou alta e autoritária, me senti uma criança mal criada levando bronca pela milésima vez em apenas um dia. Que direito tinha de erguer a cabeça e tentar retrucar? É, nenhum. - Como você mesma disse, não é mais uma criança, sabe como o mundo é. E você sabe também como é ser amada, Demetria. Eu sabia. Lembro-me do homem bom que ele era quando olho para você.
Aquilo foi demais para suportar. Levantei-me bruscamente, caminhando consternada em direção a porta. 
- Não me associe àquele monstro! - esbravejei totalmente exasperada, segurando a maçaneta da porta, pronta para sair dali. No entanto, uma força desconhecida pareceu segurar meu corpo e em seguida me fez sentir o mortal arrependimento fluindo pelas veias. Quem eu pensava que era para falar daquela forma tão rude com a mulher que sacrificou sua vida pela minha? - Desculpe-me, mãe. - foi tudo que consegui proferir, fitando o chão, sem coragem de fitá-la. 
- Eu entendo sua dor e confusão. Já sofri com ambas. - respondeu ternamente, já livre da raiva momentânea de antes. - Vá para a casa, minha filha, descanse. Amanhã será um novo dia. - soltei um som negativo com a boca. 
- Novo dia, é claro, mas com o mesmo problema de sempre. A droga do passado! 
- Não pense assim, pense que o passado volta por algum motivo aproveitável. - dizem que você não pode fazer pouco caso de um conselho de mãe, mas era dificultoso ceder e tentar aprender algo com aquelas palavras. Não faziam sentido para mim. - Pense que o passado volta para que possamos encontrar algo de utilidade perdido por lembranças, algo que vai colocar nosso futuro nos eixos. 
- Boa noite, mãe. - tudo em meu ser fora cético durante aquela despedida; a voz, a expressão e a opinião. Identifiquei sua resposta quando já tinha fechado a porta. Voltei para dentro de meu carro, brevemente ligando para Joseph para lhe assegurar que eu estava bem e que voltaria logo para a casa, mas caiu na caixa postal. E continuou a cair nas outras três vezes em que tentei. 
Deixei a ligação de lado e dirigi pela noite, distraída com tantas descobertas e conflitos novos para absorver, sabendo que teria de ser forte novamente, impermeável diante das fraquezas novamente. Era o que a vida exigia e eu tentaria cumprir arduamente. 

Estacionando meu carro em seu devido lugar, esfreguei meus olhos para eliminar qualquer resquício de lágrimas, não queria preocupar minha família. Saí do carro e estranhei uma pequena agitação vinda de algum ponto mais a frente do jardim. Caminhei determinada a encontrar o motivo das conversas altas, até que avistei Joseph e uma mulher conversando, ou melhor, discutindo. Jamie estava parado ao lado de meu marido e tinha uma expressão desolada e aflita, como se sentisse medo do ser desconhecido. Aniquilei a distância e permiti que todos me notassem, cada um fitando-me de forma peculiar. Joseph suspirou e bagunçou os cabelos, Jamie soluçou como se chorasse e a mulher virou-se para me encarar com um sorriso nos lábios. 
- Quem é você? - indaguei e ela nem respirou antes de responder categoricamente: 
- Olá, muito prazer. Meu nome é Zoe Johnson. - estendeu uma mão, pedindo por um cumprimento que tardei a conceder. - Você deve ser a mãe adotiva do Jamie, certo? - tentando desvendar onde ela queria chegar, concordei com a cabeça e prendi minha atenção em seu rosto. As sardas, os olhos azuis... Mudei a direção de meus globos oculares, que se chocaram contra os de Jamie. Ele negava com a cabeça, como se pedisse para que eu acabasse com aquela situação. - Então temos algo em comum, ambas somos mães dele... - ela sorria orgulhosa, revelando a seguir a continuação de suas palavras, mas seu semblante amigável fora substituído por um que revelava escárnio. - Meu diferencial é que sou a verdadeira
Primeiro o musical de Rusty, a obsessão dele por me ter como estrela principal. Depois a suposta herança deixada para mim, parte de um hospital infantil... E então, uma estranha que diz ser a mãe verdadeira do meu filho. 
Por um instante naquela noite, o chão pareceu sumir. E talvez ele tenha sumido mesmo, pelo menos para mim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sem comentario, sem fic ;-)