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sexta-feira, 10 de abril de 2015

Secretary III - Capítulo 15

Fogo e gelo
(Músicas do capítulo: Was it a Dream? do 30 Seconds To Mars, Immigrant Song na versão de Karen O with Trent Reznor & Atticus Ross, The Beginning Is the End Is the Beginning do Smashing Pumpkins e Sweet Dreams na versão da Emily Browning. Se possível, deixe todas carregando e coloque uma a uma para tocar quando cada aviso surgir.)




(Coloque a primeira música para tocar!)
Joseph abriu os olhos e sentiu o suor em sua testa, não se atrevendo a virar o rosto antes que pudesse constatar estar livre de qualquer tipo de ameaça. Ele foi se levantando aos poucos, com a cabeça girando, sentindo-se um pouco tonto. Lábios secos, mãos frias, coração acelerado. Rapidamente o homem colocou-se de pé, abandonando aquela cama bagunçada. Olhou ao redor e pode comprovar que se tratava de um ambiente muito familiar. Era um quarto com paredes azuis, roupas e sapatos jogados pelos cantos, posters que aos poucos se descolavam da parede e um cheiro forte de cigarro misturado com o de alguma bebida alcoólica poderosa. Era seu quarto quando adolescente.
Enxergando um espelho trincado a sua frente, ele se aproximou do mesmo, talvez quisesse comprovar se sua imagem continuava a mesma. E nada realmente parecia diferente. Era o homem que se lembrava. Apesar das leves linhas roxas abaixo de seus olhos e os cabelos bagunçados, ainda assim conseguia parecer apresentável. Os pequenos pontos de barba em seu rosto eram insignificantes, e vez ou outra ele se sentia incomodado, levando os dedos até aquela região e tentando se livrar de uma leve - porém desconfortável - coceira tão característica. Distraído com trivialidades, custou a perceber que alguém estava parado atrás de si, mantendo apenas uma curta distância. Os olhos verdes se arregalaram imediatamente e tudo que ele conseguiu fazer fora se virar em um ímpeto, recebendo nada mais do que um olhar esperto e um sorrisinho que expressava o mais genuíno deboche. Como seria possível? Como seria possível conseguir enxergar a si mesmo, sem qualquer auxílio de algo que pudesse refletir sua imagem? Lá estava, frente a frente com ele, um garoto que aparentava ter no máximo dezessete anos. Os cabelos que já necessitavam de um corte descente eram bagunçados em sua cabeça, vários fios espalhados pela testa. Os olhos verdes eram vivos em excesso, mesmo que olheiras profundas tentassem ofuscar seu brilho jovial. As roupas eram despojadas até demais, largadas. O ser usava uma jaqueta de couro gasta que cobria uma camiseta branca qualquer. Uma calça jeans surrada e um par de all star que poderia ter pertencido a alguém do século anterior. A má índole cobrindo cada mínimo pedaço de seu ser, como se desenhasse cada traço e movimento seu.
Aquele era Joseph Jonas, o adolescente.
O garoto abaixou o olhar e tirou um maço de cigarros do bolso interno da jaqueta, pegando também o isqueiro prateado e o acendendo sem grandes esforços. Deu apenas uma longa tragada, olhando para os lados antes de soltar a fumaça e rir novamente. O Joseph que o encarava não sabia ao certo o que fazer, mas era óbvio que se tratava de um sonho. Um tolo sonho.
- Ora, ora, se não é o perdedor... O fracassado... O que mais, Joe? - o adolescente começou a dizer em um tom que beirava a ódio, como se olhar para aquele homem o infernizasse. - Veja só no que você se transformou. - tragou o cigarro outra vez, negando com a cabeça. - Não tem vergonha?
- Vergonha eu teria se tivesse sido tolo o suficiente para continuar nesse porcaria que você chama de vida. - o homem rebateu seguro de si, tentando se esquecer por um segundo que parecia mergulhado em insanidade pelo fato de estar respondendo a ele mesmo. - Onde estamos? No Passado?
O garoto largou os braços ao redor do corpo e ficou encarando o homem de uma maneira blasé, completamente entediado.
- Pode ser... Ou talvez você tenha enlouquecido de vez e está delirando. Eu não duvido.
- Você poderia estar morto agora, garoto.
- Eu já estou, não estou? O que restou de mim foi... Isso. - Joseph estreitou os olhos ao enxergar o dedo indicador do outro ser apontado em sua direção, acompanhado por uma expressão de nojo. Sentiu vontade de quebrar aquele dedo, mas manteve o corpo parado. - Vamos sair daqui, me siga. - o garoto pediu, passando rapidamente por ele, que sem saída o seguiu.
Logo estavam em algum lugar completamente distinto do anterior, semelhante a uma praia.
Era uma área cinzenta, fria. Provavelmente a única alma atormentada que teria coragem de se expor àquela baixa temperatura atendia pelo nome de Joseph. O homem acabou por se lembrar daquele local, sempre acabava jogado naquela areia com algum simples cigarro ou droga mais forte, pensando em como sua vida era inútil e em como a morte poderia capturá-lo a qualquer momento.
- E aí, Joe, conseguindo lidar com tanto peso nas costas? Porque você ainda se lembra de tudo, não é? Esse mantra "Passado é passado" não faz muito sentido para você. - o garoto acendeu outro cigarro e se sentou em uma pedra de tamanho mediano, olhando fixamente para o mar. - Você não se esquece da merda que aconteceu com seus pais, não se esquece dos dias que se atormentou por acreditar ter matado a melhor amiga. Não se esquece que a mulher que ama já colocou a vida em risco tantas vezes... Por você. Não se esquece que essa mesma mulher foi de outro cara... Enquanto deveria ser somente sua.
O garoto não teve tempo de se segurar, já tinha escorregado da pedra e caído de costas na areia, fechando os olhos com força e tentando ignorar a dor. Joseph o tinha empurrado com força, demonstrando os primeiros indícios da raiva que sentia toda vez que tudo aquilo voltava em cena.
- Bom... - o outro tentou se levantar, esfregando as mãos sujas de areia úmida na própria calça. - Parece que você ainda deixa tudo isso te afetar, caso contrário não teria partido para a violência.
- É melhor você...
- O quê? Me calar? Joe, eu não posso me calar. - riu maldoso. - Nós somos a mesma pessoa. Se isso passa pela minha mente, certamente passa pela sua. Se isso me atormenta, também vai te atormentar.
Antes que o mais velho pudesse abrir a boca para responder, uma garota passou correndo pelos dois, obrigando seus corpos a se afastarem em um impulso para trás. Joseph a observou, a assistiu se aproximar do mar e molhar apenas seus pés. Estava toda vestida de preto, e os cabelos permaneciam em um coque mal feito. De repente, seu rosto se virou na direção dos dois, e o homem a reconheceu imediatamente.
- Demetria...
- Oh, sim. Essa é a Demetria adolescente. Sabe em que ela está pensando?
Joseph teve medo da resposta.
- Em quê?
- No amor não correspondido. Pois você sabe que Cameron Wolfe foi o primeiro amor da vida dela, certo? E como é mesmo que as garotas dizem? Nunca esquecemos o nosso primeiro amor... Pobre Joseph.
O garoto fora empurrado mais uma vez.
A jovem Demetria recuou alguns passos, virando o rosto ao perceber que outro garoto vinha na direção dos dois. Era Cameron. Um Cameron ainda mais jovem que simplesmente ignorou a garota quando passou ao seu lado. Com um semblante entristecido, ela abaixou a cabeça e fechou os olhos ao sentir um vento frio acariciar seu rosto. Joseph se perdeu nela por um instante, conseguindo identificar - mesmo diante daquela maquiagem borrada e aparência rebelde - o ser que tanto amava. Demetria ergueu o rosto, e o olhar dos dois se encontrou como mágica, como inexplicável obra do destino. Ambos sorriram.
Determinada, a garota começou a caminhar em sua direção, enquanto o Joseph mais jovem parecia ter desaparecido completamente. A cada novo passo, algo no corpo de Demetria ia se modificando. Primeiro foram os cabelos, que se soltaram e caíram por seus ombros em longas ondas impecáveis. Depois o rosto, que perdeu o aspecto sombrio devido a maquiagem, adquirindo a aparência angelical e ainda assim sedutora. Por último, seu corpo. Antes esguio demais, naquele momento apresentava curvas em perfeita ordem. As roupas de uma típica adolescente - que quer gritar ao mundo pensar diferente através de seu estilo - se transformaram em um elegante vestido branco, que dançava em seu corpo com o vento. Ela parou de frente para ele, não medindo consequências antes de erguer um dos braços e acariciar seu rosto. Joseph olhou para sua outra mão e avistou um reluzente revolver. Incerto, a olhou nos olhos e conseguiu enxergar ali a calmaria que sempre buscava. Os lábios da mulher se abriram, prontos para as seguintes palavras:
- Não é o primeiro amor que nunca esquecemos, as pessoas precisam parar de se apegar tanto a certos clichês. Na verdade, o que nunca poderá ser esquecido é o amor que mais marcou, sendo o primeiro ou não. E, quer saber? Amor de verdade só existe um, o resto é paixão, é equívoco, talvez até carência. O amor verdadeiro é o que permanece mesmo quando o resto se entrega a falência, a falta de esperança, até mesmo quando ele é o único sentimento resistente que não se dobra aos impasses da vida.
Naquele instante, depois das palavras que possuíam o poder de curar o mais impetuoso dos males, nada mais que fora dito pelo adolescente parecia surtir algum efeito.
- Você é... Muito... Patético! - porém o mesmo ainda tentava dizer enquanto gaguejava fraco, como se aos poucos assistisse seu próprio corpo se desintegrar.
- Cale a boca, seu verme!
Joseph segurou o revolver e olhou para baixo, encarando o garoto que o encarava de forma séria, até que permitiu o sorriso debochado dar o ar de sua graça. Demetria passou uma mão por seu ombro, e Joseph engatilhou a arma, respirando fundo antes de dar um fim a toda aquela situação. Ele assassinou seu eu do passado, deu um fim ao tormento que vinha procurá-lo em noites frias como aquela. De uma vez por todas.
Seus lábios famintos se juntaram aos da mulher, e nada nunca pareceu tão certo.


Ele acordou de repente, erguendo o tronco e ficando sentado na cama. Seu corpo másculo vestido apenas com uma boxer cinza era coberto por uma fina camada de suor. Os olhos cansados tentavam permanecer abertos enquanto ele encarava o outro lado da cama, vazio. Tentava absorver os acontecimentos daquele sonho, perguntando a si mesmo se tinha conseguido de fato acabar com o Joseph do passado. Uma estranha sensação de liberdade circulava por seu corpo a cada nova batida de um coração ainda acelerado pelo susto. Depois que se levantou, sentindo sua cabeça latejar, ele foi até uma escrivaninha, sem se importar em vestir algo primeiro. Abriu uma gaveta com pressa e retirou dali um envelope branco. O mesmo não tinha sido aberto ainda, e enquantoJoseph fitava a data, tentava chegar a uma conclusão precisa: ler ou não ler aquela carta
Bufando, ele desistiu de evitar e caminhou até a cama novamente, largando o corpo ali e abrindo o envelope sem cuidado algum. O rasgando, retirou um papel dobrado e olhou firme para as palavras que se formavam com aquela caligrafia impecável. Não foi capaz de esconder um sorriso, um inseguro sorriso que surgiu em seus lábios assim que ele pensou na responsável por tudo ali escrito. 
Sua mãe. 

"Querido Joseph,
agora que você finalmente está livre, não sei e nem quero esconder minha felicidade. Queria poder te abraçar agora, mas sei que não posso. E temo não poder nunca mais. Eu não me sinto nada bem, parece que meu fim está próximo. Estou doente, meu filho. Nesse momento tudo que ainda sou capaz de cobiçar é ter um último dia, sabe, para passá-lo com você. Poderíamos passar longas horas conversando, sem mágoas. Você poderia me dizer se ainda tem medo de trovões - eu sei que não tem! -, me diria quais são seus maiores receios e o que você espera do restante da vida. É muito tempo, não é? Eu sei, às vezes parece assustador, porque você simplesmente não consegue visualizar o que te espera na porta a seguir.
Posso te pedir uma coisa? Talvez eu não tenha esse direito, mas acho que não custa nada arriscar: não viva sua vida com esse infinito peso nas costas, deixe para lá. Leve para longe e depois volte correndo para que ele não consiga te alcançar novamente. Sorria, pois você tem muito ao que se apegar, muito pelo que lutar. Ao contrário de sua pobre mãe, jamais deixe que a dificuldade da impotência e da covardia o afaste do que realmente importa. Não sei se pretende ter filhos, Joseph, já que faz muito tempo desde que você me disse que gostaria de ter três, mas eu imploro: cuide deles, seja o melhor pai do mundo. Cuide de Demetria também, ela realmente foi a sua salvação. E eu espero que esse bonito amor nunca tenha fim. Nunca.
Você é jovem, meu filho. Você é forte, corajoso e um grande homem. Se não salvar o mundo como o médico que sonhava em se tornar, tenho convicção de que encontrará outra maneira de fazê-lo. Você é o meu maior orgulho. Não se preocupe com tempestades, pode se molhar, não vai te machucar. E, caso machuque, logo não restará mais dor alguma. Lembre-se sempre disso. Sem arrependimentos. Você pode passar pelo que for, mas nunca estará sozinho.
Eu não fui a mãe que você mereceu, mas tentei ser o máximo que fui capaz. Talvez não exista perdão, talvez eu tenha me equivocado. Na verdade, já não importa mais. Eu estou feliz, porque meu filho superou todas as expectativas que adquiri assim que o segurei em meus braços pela primeira vez.
Estou partindo, Joseph, eu sinto. Vai ver que é porque já cumpri minha missão por aqui, aliás, eu acho que a cumpri há muito tempo. Eu trouxe uma pessoa incrível ao mundo, não poderia ter sido designada para tarefa maior e melhor. Quando estiver triste, olhe para a primeira coisa que te faz lembrar felicidade, e se ela estiver longe, não crie barreiras formadas por insegurança, não dê brechas para o medo, vá atrás do que lhe fortalece. Eu estarei sempre, sempre, sempre olhando por você.
Nunca se esqueça que sua mãe sempre te amou, e vai te amar para sempre.
-Elizabeth.
"

Não quis chorar, na verdade, não fez nada a não ser guardar a carta no envelope e devolvê-la àquela gaveta. A estranha sensação de revigoração o motivou a tomar um banho quente. Assim que o fez, arrumou seu cabelo e passou um pouco do perfume que Demetria tanto adorava. Vestiu uma calça social grafite, uma simples blusa azul de mangas longas e um casaco também grafite por cima. Sem terno naquele dia. Concentrado na alegria que obrigava a si mesmo a não deixar desaparecer, olhou seriamente para o espelho, erguendo uma sobrancelha. 
"Olá, meu nome é Joseph Jonas e eu acabei de matar Joseph Jonas!
- Não faz o menor sentido. - disse a seu reflexo, tendo a última lembrança daquele sonho. Logo desistiu de continuar naquele quarto e saiu pelo corredor, constando que era o único que dormiu por mais tempo na casa. Ao descer as escadas, ele sorriu novamente ao ser presenteado por uma cena comum, rotineira, mas ainda sim tão boa de se olhar. 


Demetria's P.O.V

A televisão grande presa a parede exibia algum programa do canal Discovery Home & Health, e eu tentava me manter entretida, por mais que acabasse prestando mais atenção em meu filho. Almofadas fofas sustentavam seu pequeno corpo para que não caísse para trás enquanto se divertia livremente com um pianinho, que reproduzia sons diferentes toda vez que uma tecla era apertada. Juntamente com o som da televisão, eu conseguia ouvir Matthew tentar balbuciar vogais, o que prendia totalmente minha atenção e me obrigava a virar o pescoço e sempre olhar em sua direção. Eu sabia que estava cedo, mas não conseguia deixar de sonhar com o momento em que escaparia por seus lábios a primeira palavrinha completa. Ao invés de me dedicar a Pilates ouYoga, eu simplesmente continuava sentada no tapete fofo de qualquer jeito, com uma blusa lilás de mangas longas e pano leve que caia por um lado dos ombros, juntamente com uma calça branca igualmente leve que sempre era inútil na hora da tão amada Yoga. Dividindo minha atenção com poucas coisas, me deixei levar pela simples sensação de ser uma mulher normal assistindo a programas extremamente dedicados a mulheres normais. Eu gostava daquele canal, fazia parecer que a vida era tão... Complexamente simples. 
Perdendo um pouco a noção do tempo, olhei o relógio e percebi que Joseph ainda não tinha levantado. Estranhando aquilo, já que ele era sempre o que acordava primeiro na casa, olhei para a escada por alguns instantes. O som da campainha fez com que eu virasse o rosto para o outro lado, enxergando Nancy se mover com rapidez até a porta, a abrindo. Passos se aproximaram rapidamente de onde eu estava, até que um ser de cabelos loiros parou de pé ao meu lado, com um sorriso grande demais nos lábios. Tudo que eu fiz fora revirar os olhos. 
- Bom dia, Dominic. - falei sem muito interesse, ainda remoendo o que Joseph tinha me contado. A vontade de levantar e travar um acerto de contos naquele exato momento poderia até parecer bem interessante, mas eu preferi fingir que ele era invisível. O homem respondeu com um aceno de cabeça e se abaixou para ficar perto de Matthew, erguendo a palma de sua mão aberta como se sugerisse um high five. - Esse é o meu garoto! - eu disse convencida quando Dominic desistiu ao perceber que Matthew não ligava a mínima para ele. 
- Onde está meu bom homem? Ainda dormindo? Pelo amor de Deus! - ele largou o corpo no sofá, totalmente à vontade. - Vá acordar ele, por favor. 
- Não precisa, Dominic. - olhei novamente para a escada, enxergando meu marido descer. O cheiro de seu perfume de repente tomou conta do recinto e Dominic estendeu a mão novamente, sendo ignorado novamente. 
Tal pai, tal filho. - brinquei, recebendo apenas um rolar de olhos do loiro. 
- Pronto? - ele perguntou a Joseph, que se aproximou de mim para beijar meus lábios. 
- Fique calado por um instante, sim? Não vê que alguém aqui tem família e precisa contemplá-la? 
- Blah, blah, blah... - Dominic zombou, ignorando a todos nós. 
Joseph se afastou novamente, chamando Dominic para que os dois fossem até o escritório. Bufei ainda um pouco sonolenta, já conseguindo sentir mesmo que de forma leve o impacto que a mudança brusca da Empire conseguia causar entre nós. Não que estivéssemos brigando, muito pelo contrário, mas se ele já ficava andando de um lado para o outro tempos antes, totalmente ocupado, eu tinha medo de imaginar o que a expansão daquela companhia seria capaz de fazer. Tentando não pensar mais nisso, reservei um pouco do meu extenso tempo vago para brincar com Matt, lembrando que era sempre recomendável ficar ao lado do bebê quando seu desenvolvimento adquirisse um nível mais elevado. Estimular sua inteligência era o que eu estava determinada a fazer. 
Porém, os dois homens de negócios voltaram a surgir na sala. Joseph já começava a servir whisky para os dois, mas fui rápida a me certificar de que Matthew ficaria bem sozinho por alguns segundos. Levantei-me em um impulso e passei a frente de Dominic, que reclamou. Tomei os dois copos das mãos de Joseph, que tentou recuperá-los sem sucesso. 
- Perdão, rapazes, mas nada de bebidas agora. - ergui meu rosto o necessário para conseguir olhar Joe nos olhos, aproximando nossos rostos. Ele sorriu, como se tentado a algum tipo de desafio e eu apenas mordi meu lábio. - Está muito cedo. 
Em seguida saí de perto dos dois, me livrando dos copos de whisky e voltando a ficar com meu filho. 
- Eu tenho pena de você, Joe. Onde conseguiu esse ser tão controlador? - Dominic dizia, fingindo uma voz sofrida. 
- Você não viu nada, mate
- Saiba que eu não sou surda, Joseph Jonas. - adverti, sem virar meu rosto, permanecendo de costas para eles. 
Os dois conversaram por um curto espaço de tempo sobre problemas e soluções da Empire. Enquanto assuntos iam e vinham, os dois começaram a fazer citações de filmes. Envolver ficções famosas no meio de suas vidas. Reconheci qual era a próxima que Dominic escolheu, e não era muito difícil depois de notar a mudança repentina em sua voz que ficou arrastada. Don Corleone
Se um homem como você tivesse inimigos, eles seriam meus inimigos. - tive que me virar para poder presenciar a cena. Dominic apontava para Joseph, que manteve um olhar sério e poderoso, digno de um mafioso. - E eles teriam medo de você.
Os dois riram, completamente felizes, como se suas vidas dependessem daquilo. 
Você se dedica a sua família? - foi a vez de meu marido imitar o personagem, conseguindo se mostrar completamente sedutor. Matthew também os olhava, olhando para mim em seguida como se perguntasse "eles são loucos, mamãe?
Claro que sim! - Dominic respondeu. 
Ótimo. - Joseph cruzou os braços, me lançando um olhar bem humorado. - Um homem que não se dedica à família nunca será um homem de verdade
Enquanto a dupla continuava a citar O Poderoso Chefão, voltei a me concentrar em Matthew, que de repente ficou manhoso. O peguei em meu colo e me sentei no sofá, tentando niná-lo. O celular de Joseph tocou, pude ouvir. 
Um silêncio estranho. 
Demi... - meu marido disse bem baixo, se aproximando aos poucos. Sentou-se ao meu lado, um pouco inseguro. Tentei encontrar a explicação em seu rosto, notando que ele tentava esconder o visor do aparelho. - É a Valerie. - provavelmente até Matthew sentiu a tensão se alastrar pelo meu corpo, já que se mexeu desconfortável e começou a resmungar. Virei o rosto e fechei os olhos, tentando não parecer ridícula ao demonstrar raiva. Mas era inevitável. O que aquela mulher ainda pretendia com nós? 
Atenda. - quando percebi, o estrago já estava feito. 
Demi... - ele tentou, os olhos levemente assustados, provavelmente com medo de minha reação seguinte. 
- Atenda, Joe, por favor. Vamos ver o que ela quer. - minha voz determinada o obrigou a encarar o celular, que continuava a tocar. 
- Não é uma boa... 
- Atende logo isso! - Dominic exclamou do outro lado da sala, enquanto se distraía com uma bebida. Meu marido o mandou calar a boca e respirou fundo, atendendo de uma vez. Ele não disse nada por algum tempo, apenas manteve os olhos verdes presos a qualquer coisa, como se estivesse ali apenas em corpo, sua mente viajando para outros lugares. 
- Ela quer falar com você. - ele disse, estendendo o aparelho para mim. Arregalei meus olhos com descrença, deixando que uma risada baixa começasse. - Estou falando sério. 
Não tive saída senão atender e sentir meu sangue ferver ao simplesmente escutar aquela voz. Fingi estar calma, claro, ela não poderia notar que tinha um efeito tão insuportável sobre mim. Não podia notar que a simples lembrança de imaginá-la com meu marido despertava instintos assassinos em meu ser. Porém, me manter calma era essencial, já que um bebê dormia em meu colo. Era angustiante a sensação de ter todos os músculos tensos, principalmente porque Joseph não saia do meu lado, continuou ali com seus olhos curiosos me medindo de forma precisa. 
- Diga de uma vez: o que quer comigo? - indaguei friamente. 
Quero que venha a minha casa, querida. E, não, não tem nada a ver com os planos superficiais do Sean, eu posso garantir. Digamos que... Eu tenho uma saída para o seu impetuoso problema. 
- E qual seria o meu impetuoso problema? 
Seu pai. - segurei o celular com mais força, atônita. - Sei que não confia em mim, mas você vai se arrepender se deixar que um ciúme desnecessário arranque todas as chances de se livrar daquele velho...
- Valerie... - ela me cortou. 
Você virá ou não? - olhei fundo nos olhos de Joseph, e ele já negava com a cabeça como se soubesse do que se tratava. Não era a coisa certa a se fazer. Insensato seria um eufemismo severo para o tolo ato que eu estava prestes a cometer. Mas algo dentro de mim implorava para que atenção fosse depositada naquela causa, era como se eu soubesse que de fato ela poderia me ajudar. O desespero por encontrar uma luz no fim daquele angustiante túnel tinha o desejo de exercer o controle dos meus pensamentos, e, tarde demais para arrependimentos, eu assenti. Depois fui apenas capaz de encerrar a chamada, sem nem mesmo me despedir. 
Joseph pediu que eu explicasse o que se passava, e tentei fazer isso com calma. Calma em excesso, que provavelmente me deixou parecendo um robô de gestos mecânicos e dificultados. 
- Como eu disse... Talvez seja plausível agarrar essa chance, Joseph. - eu tentava justificar, mas ele já se mostrava um pouco exaltado, negando com a cabeça e fechando suas mãos em punhos. Um pouco impaciente, me levantei, percebendo que os olhinhos de Matthew estavam abertos. Ele era o mais confuso de todos nós, com certeza. Sua compreensão da gravidade dos fatos era quase mínima. Por um instante, apenas um instante, desejei não ter noção do perigo, exatamente como ele. - E se ela não estiver mentindo? E se isso resultar em algo bom? 
- Seja lá o que estiver pensando... Pare agora! - Joe se levantou também, pronto para um longo sermão. Fazia parecer que tínhamos trocado os papeis, e que eu era quem me envolvia em perigos constantes sem medir consequências. - Deixe a Valerie para lá de uma vez por todas, Demetria, eu imploro! Dominic deveria estar nos observando completamente entediado, ou rindo. 
- Fale mais baixo, você vai assustá-lo! - pedi um pouco tarde demais, já que Matthew começou a chorar, e isso só pareceu contribuir para que Joseph continuasse a falar, encontrar a justificativa perfeita para me obrigar a mudar de ideia. Como eu poderia rebater seus argumentos a altura com um bebê desesperado em meus braços? Era covardia excessiva. 
- Você não vai colocar os pés na casa daquela mulher. Não vai. - fez soar como uma ameaça, uma imponente ameaça que proporcionou um arrepio correndo livre por minha espinha. 
- Eu é que deveria estar te recomendando isso, Joseph, afinal... Não fui eu que quase fugi com ela. 
- Você sabe muito bem que eu não ia fugir com ela. - e então aquela briga sem sentido começou. Um atacava o outro, mesmo que no fundo ambos tivessem o conhecimento de que se tratava de algo desnecessário, absurdamente trivial. Insistência em assuntos já finalizados, insistência na sensação de que atacar um ao outro favoreceria uma possível desistência por um dos lados. Nós éramos irritantemente insuportáveis, e talvez nossas personalidades conflitantes fossem donas da responsabilidade de manter nossa ligação tão viva e intensa. A tentação por provocar mesmo quando o momento não era oportuno, mesmo quando existia mais desapontamento do que desejo perambulando ao nosso redor. Os olhares trocados que sozinhos se comunicavam sem precisar de nossa fúria interior. Os olhares que desejavam um abraço, um beijo e calor reconfortante quando nossas mentes nos faziam acreditar que desejávamos apenas o desentendimento. A mistura de sentimentos nocivos e essenciais que guerreavam, sentimentos que se entrelaçavam de forma errônea, mas que de um jeito contraditório faziam tanto sentido como o nascer do sol. Éramos uma incógnita cruel. - Você não vai e pronto. - ele cruzou os braços como uma criança birrenta, só faltou bater o pé com raiva. Eu sabia que sua única intenção era me proteger de possíveis danos, mas eu já estava tão exposta a tudo aquilo, que simplesmente não fazia diferença. E eu não estava brincando quando disse a ele que poderia até mesmo me transformar em meu irmão Carter caso fosse necessário, caso aqueles que eu amava precisassem da minha ajuda. 
- Não é o seu pai que está tentando acabar com a sua vida aos poucos, não é? 
- Esqueceu que o meu  tentou? Esqueceu que quase conseguiu? 
Não tive outra saída a não ser baixar a guarda por segundos. 
- Então eu vou cuidar para que a história não se repita. E, só para deixar bem claro, Joseph: eu sou sua esposa, mas você não manda em mim! - depois optei por falar, talvez um pouco alto demais, voltando a chatear meu bebê, que tentava de todos os jeitos possíveis implorar para que eu o levasse para longe daquela discussão. Não poder falar nunca fora tão angustiante para o pequeno. 
- Não mando mesmo, e nem pretendo. Não quero ditar como você deve fazer as coisas, porque acho que sabe fazer tudo perfeitamente bem. Só que acabamos de encontrar uma exceção... 
- Tente me entender, Joe, por favor! 
Joseph se mostrou um pouco exasperado com minha petulância e insistência, então respirou fundo, concordou com a cabeça e se afastou alguns passos, largando as mãos no ar, um gesto de quem desiste. 
- Tudo bem, Demetria, pode ir e pode continuar com esse disfarce infantil. Você não manda em mim? Quantos anos tem, por acaso? - abaixei o olhar, tendo de concordar com ele em silêncio. - Certo, não precisa responder. Eu não quero saber de nada. Portanto, independente do que aquela louca estiver tramando, não peça minha ajuda depois. 
- Não vou pedir. - não olhei para ele, apenas disse de qualquer jeito. Torci para não precisar de ajuda alguma. 
- Vamos, Dominic! - ignorou minha resposta com sua conclusão silenciosa e aborrecida dos fatos e chamou o outro, que sorriu sem graça e apenas acenou em despedida para mim. Sentindo o clima pesado instalado por todo o ambiente, mais potente que uma rajada repentina de vento, fitei as costas de Joseph enquanto ele se afastava até chegar a porta. No entanto, algo o fez mudar de ideia e o obrigou a se virar em minha direção novamente, rompendo aos poucos a curta distância entre nós. - Ela disse algo mais? O que você está escondendo, Demetria? Eu não gostava de omitir coisas dele, de forma alguma, mas naquele momento o arrependimento por ter ocultado o momento mais importante de minha conversa com Valerie não se mostrou presente. O momento em que ele tinha que sabia como tirar meu pai de nosso caminho. Um pouco desconcertada, olhei nos olhos de Joseph e depois para nosso filho, acariciando seus cabelos. 
- Vem, meu amor, é hora de tomar um bom banho! - sorri sincera para Matt, que sorriu também. Não disse mais nada ao homem imóvel a minha frente, apenas dei as costas a ele e subi as escadas o mais rápido que minha consciência pesada permitiu. 

/Demetria's P.O.V


Nova York

Os raios ardidos de sol batiam contra suas costas cobertas pelo tecido resistente do casaco preto com um capuz - que escondia quase todo o seu. Algumas mechas de cabelo que escapavam e se movimentavam por aquele rosto de pele alva tinham sua cor avermelhada intensificava devido a claridade excessiva do lugar onde se encontrava. Com os olhos atentos como os de um felino pronto para caçar sua presa, a mulher levou o cigarro novamente até a boca, o mantendo segurado pelos lábios enquanto vasculhava por algo nos bolsos de casaco. Precisava admitir: era pouco, muito pouco. Uma simples arma não daria conta do recado, mas o objetivo por enquanto era não chamar atenção para si. Ela retirou o cigarro da boca, deixando a fumaça escapar enquanto revelava um toco de cigarro marcado pelo batom quase preto que cobria seus lábios. Após jogar aquele resto longe, ajeitou o capuz e começou a andar, apertando o passo a cada vez que alguém passava perto demais de seu corpo. Atravessou uma daquelas ruas movimentadas olhando para baixo, movendo-se com toda a agilidade que sabia. Quem estivesse enxergando ao longe poderia afirmar se tratar de um sobrenatural vulto. Suas calças de couro com fivelas nas partes laterais - que começavam no cós e iam até a barra - eram parcialmente cobertas pelas botas de um salto surpreendemente alto. Como se a vontade de acabar com algumas vidas podres fizesse com que adquirisse até mesmo habilidade para se equilibrar sobre eles. E aquilo surpreendia até a ela mesma. Por baixo do casaco tinha apenas uma blusa preta justa co corpo como uma segunda pele. Os dedos de unhas curtas eram forçados contra as palmas de suas mãos fechadas em punhos. Parecia uma distância interminável, era como almejar a liberdade enxergando grades por todos os lados. Era incerto, nocivo. Deveras perigoso. Mas tentador demais para ser ignorado. 
Após sentir o corpo ser esbarrado em alguma coisa, provavelmente uma pessoa, nem se deu ao luxo de pedir desculpas e continuou a contornar toda aquela loucura, levantando cautelosamente o rosto. Lá estava ele. O grande prédio aparentemente inofensivo. Os inocentes ao redor da mulher poderiam jurar de pés juntos que se tratava de uma simples firma de advocacia comum. Realmente, aquela era a sua fachada, a parte interna - pelo menos o início - realmente abrigava profissionais daquela área. Mas bastava apenas um toque em um botão, apenas se submeter ao desagradável passeio em um elevador para chegar até o destino. O destino mortal. Mas isso não a amolecia, não era como se não estivesse acostumada. Driblando a distância definitivamente, foi como se uma nostalgia proibida corresse por suas veias. Um sorriso de canto se formou em seus lábios quando o vento pareceu correr por ela novamente. Ignorando as batidas frenéticas do coração, ela adentrou a empresa sem problemas, revelando uma antiga credencial que conseguiu colocá-la para dentro da organização em um piscar de olhos. Quem havia dito que guardar demônios do passado era algo proibido? Ela sabia que chegaria a hora de usar recursos como aqueles, e enquanto se infiltrava naquele lugar sem sequer ser notada, permitiu a si mesma sentir um pouco de saudade. Saudade da época em que era apenas um soldado de uma interminável guerra chamada mundo real. O mundo real, tão frio e desprovido de misericórdia. Por mais que tivesse experimentado a oportunidade de desfrutar da feliz e doce normalidade por um tempo, aquela realidade lhe parecia mais apropriada. Pelo menos naquele dia. O botão do elevador fora apertado levemente, como se tivesse sido tocado pelas mãos mais delicadas existentes na Terra. Ela colocou seu corpo para dentro e manteve os olhos fixos a algo em sua frente, sem se deixar abater pelo confronto de emoções que parecia atingir cada órgão de seu corpo de uma vez. Assim que as portas se abriram e ela pôde escutar aquela conhecida campainha ressoar, colocou o pé direito para fora, ouvindo apenas o eco dos saltos de suas botas contra o chão frio e de piso escuro. 

(Coloque a segunda música para tocar!)
Os passos antes cautelosos se transformaram em furiosos, fazendo um alvoroçado alarde de sua presença. Seus quadris possuíam aquele balanço exagerado, em completa sintonia com os braços tensos que balançavam minimamente. Um deles foi erguido até que a mão alcançasse o capuz, o puxando e jogando para trás, revelando por fim o rosto do ser de cabelos vermelhos, olhos maquiados em excesso e lábios repuxados em um sorriso que oscilava entre excitação e ira. Em sua mente uma sinistra trilha sonora digna de um filme de ação era reproduzida, e não levou muito tempo para que ela encontrasse seu primeiro obstáculo. Próximo a uma gigante porta, com o símbolo de um círculo que abrigava um "x" traçado por uma linha e esculpido no metal resistente, estava um homem de vestes pretas que desfez a calma em seu rosto assim que seus olhos se encontraram com os dela. Seu corpo pareceu adquirir uma posição de ataque, disposto a avançar em direção daquele rosto conhecido sem se importar com o fato de que ser derrotado era uma certeza. 
Rápido demais para olhos humanos captarem, ele correu na direção dela e parou quando sentiu que era tarde demais. Sua mão esquerda fora segura gentilmente pela dela, revelando o calor excessivo. Deixando-se perder no mar misterioso daqueles olhos maquiados, foi tolo o bastante para sucumbir a distração e ter o corpo jogado no chão. Ela o puxou para frente, segurando com destreza seus cabelos, desnorteando completamente o homem, que foi obrigada a levantar e cair de joelhos novamente, sendo empurrado pelo joelho da mulher em seguida. Tonto, sem forças para levantar, ele a assistiu retirar três notas de valor alto de um dos bolsos do casaco, jogando-as em sua direção. Um dos saltos das botas ameaçou ser abaixado bem acima de um de seus olhos, mas a mulher apenas mudou a direção de seu passo e pisou em um dos dedos da mão dele, que tentou gritar de dor. 
Obrigada pela atenção. - ela falou com uma voz estranhamente doce, virando apenas o pescoço para dar um sorriso digno de alguém que é plenamente feliz com a vida que tem. Dando as costas ao homem, identificou que o mesmo começou a tossir antes de tentar dizer alguma coisa. 
- O que você quer aqui? Por que está fazendo isso? Ficou livre há muito tempo, sua idiota! 
Irritada, ela voltou a se aproximar dele e dobrou os joelhos, largando-se no chão. Puxou o homem pelos cabelos outra vez, arrancando outra expressão de dor. Ele era jovem, bem jovem. Talvez até mais do que ela. Um ingênuo adolescente de cabelos loiros, corpo magro demais para o trabalho que tentava exercer e plena burrice por acreditar que não existiria caminho melhor do que aquele. 
- Por que estou fazendo isso? - apertou os dedos nos curtos fios de cabelo, puxando ainda mais para cima. - Por quê? Bom, gato, eu poderia dizer que existe uma dezena de razões. Minha vida foi arruinada uma vez, e quando acreditei estar a salvo, tudo começou a desmoronar novamente. Eu não consigo ser uma mulher normal, não sei retribuir aos sentimentos de alguém que diz me amar e... Veja só: irei colocar uma cereja no topo de tudo isso! Eu perdi um filho. Tem ideia do que é isso? - ele apenas negou com a cabeça. - Claro que agora eu poderia estar fazendo algum tipo desgraçado de terapia, mas prefiro brincar de maldade por aqui. - a mulher sorriu maligna, largando o ser e levantando-se novamente. - Ok, vamos tornar isso algo mais aventureiro: estou aqui para roubar a coroa do Rei
- Por qual razão? Você anseia pela liderança desse negócio? - ela negou com a cabeça e uniu as sobrancelhas, como se estivesse se sentindo ofendida. 
- Não. É só para pisar em cima depois. 
Desistindo de perder seu tempo com trivialidades, ela virou seu corpo em um impulso, impulsionando os pés assim que começou a correr. A distância se rompia, dando a seu coração um novo motivo para voltar a acelerar. Adentrou a porta, estranhando o sufocante silêncio que se instalou assim que o som agressivo do material se fechando penetrou sua audição. Virou-se, encarando uma espécie de hall amplo e vazio, de piso negro e paredes metálicas. Uma construção suntuosa, detalhista, resistente e inabalável. 
- Dez, nove, oito, sete, seis, cinco... - realizava aquela contagem regressiva com os olhos fechados, tendo em mente que assim que terminasse não restava mais tempo algum para ações calculadas com tempo. A prioridade era agir por impulso, era deixar que a raiva guiasse cada movimento de seu corpo enquanto derrubava aquele inferno que um dia chamou de casa. - ...quatro, três, dois, um... Boom! - abriu os olhos, sacando sua arma e fingindo que o silêncio não permanecia. - Lar, doce lar
A vingança era como uma febre, uma peste que se espalhava mais rápido do que se podia calcular. Mais rápido do que os passos de uma mulher que poderia ter se contentado com o "siga em frente" que ouviu tantas vezes, mas a sede por vingança era mais voraz que a de um pobre coitado que ficava dias sem conseguir se recordar de como era ter água descendo por sua garganta. Ela sabia que estava sendo vigiada, pois conseguia enxergar as várias câmeras presas estrategicamente em pontos específicos dos cantos das altas paredes. Elas seguiam seus movimentos, com suas luzes vermelhas que piscavam como um alerta de perigo. O ar pareceu denso, como se a próxima cena daquele momento reservasse uma amarga surpresa. A mulher diminui os passos, enquanto olhava para todos os lados, desejando até mesmo ter visão nas costas para não perder nada. Encontrando dois corredores amplos e de pouca luz, ela tentou se lembrar qual deles levava até o núcleo daquele lugar, o lugar onde estava o homem que ela faria questão de enfiar uma bala bem ao centro de seu crânio o mais rápido possível. Então, novamente ela voltou a correr. Correu tão rápido que seus reflexos não foram úteis o suficiente para avisar que alguém também corria do lado contrário, o que acabou resultando em um choque violento entre os dois corpos, que cambalearam para trás. 
- Scarlett? - uma Heather de olhos arregalados perguntou em voz baixa, olhando atônita para o rosto da outra, que negou com a cabeça e deu apenas dois passos em sua direção. Tentava dizer a si mesma que aquela não era Cassie, não era a amiga que acreditou ter. Não era. 
- Scarlett? Quem é Scarlett? Meu nome é Karlie Russell! - rosnou as palavras, acertando o cano de seu revolver na cabeça da outra, que tentou resistir, mas acabou sendo vencida pela tontura. - Foi necessário, Barbie. - deixou tudo aquilo para trás, correndo por outro corredor de grandes portas. O ar frio que circulava por ali era revigorante, respirar nunca pareceu tão delicioso. Mas algo a incomodava.
Onde estava a ação
Onde estavam os homens altos e fortes cujo único propósito seria arrancar a vida de seu corpo de forma nada delicada? Era como se tudo aquilo fosse premeditado, como se sua ida repentina estivesse sendo observada de longe. Karlie já não sabia mais para que lado seguir, ou se realmente teria a chance de chegar ao outro lado antes de ser surpreendida por algo que a atacaria pelas costas. Ela era a convidada ilustre que não recebera convite algum. Onde estava a grande recepção? Um pouco distraída, Karlie mudou de direção e coçou sua nuca enquanto tentava achar a resposta para o enigma. Tentava lutar com a vontade de voltar e saber como Cassie estava, mas engoliu em seco e sacudiu a cabeça, avistando outra porta entreaberta. Aproximou seu rosto do pequeno espaço que revelava o interior do recinto, enxergando uma luz aparentemente azulada cobrir cada centímetro dali. O som do que parecia ser um monitor cardíaco a fez erguer uma sobrancelha e encostar apenas o dedo indicador no material frio e resistente da porta, a empurrando para trás e torcendo para que nenhum barulho arruinasse sua tentativa de continuar invisível. Tendo a possibilidade de enxergar tudo muito melhor, ela levou a mão até a boca quando conseguiu por fim avistar um homem deitado sobre uma extensa maca. Alguém estava parado ao seu lado, um ser de touca e máscara brancas, que trajava um jaleco branco e luvas. Um médico? 
A cena era um tanto quanto grotesca e parecia acontecer de um jeito lento, como se pudesse congelar. Karlie notou que o homem deitado na maca tinha pontos de seu rosto marcados, como se aquelas áreas estivessem destinadas a sofrer algum tipo de alteração. Como alguma cirurgia plástica que celebridades que tomam banho em notas de dinheiro se submeteriam sem medo algum. 
Karlie estreitou seus olhos quando, finalmente, pareceu identificar algo familiar por ali. Olhando com mais atenção para o braço do indivíduo deitado, ela identificou um desenho conhecido. Era uma caveira com um buraco bem ao centro do crânio. E como era possível? Só tinha visto aquela tatuagem uma vez. Uma única vez... Em Carter
Sem pensar, puxou a porta completamente para trás, adentrando o local e correndo até os dois. O suposto médico deixou que o conteúdo da agulha que segurava vazasse e atingisse o chão, o tornando escorregadio. E foi exatamente o esperado que aconteceu: devido ao susto provocado pela presença da mulher, ele acabou pisando ali e escorregando. Sem ter tempo para fazer um balanço da situação, ela mirou sua arma bem na perna do médico e disparou, não se dando ao trabalho de se incomodar com o barulho potente que assustou o outro homem, ainda deitado na cama e de olhos arregalados. 
- Carter! - ela exclamou, apavorada de repente, como se enxergasse uma aparição. - Não, não pode ser... Quem diabos é você? O que diabos é tudo isso? 
Era algo muito, muito estapafúrdio. Não bastasse ter de encontrar Cassie, a mulher frágil e superficial, por ali, ainda tinha que ser surpreendida por um homem que tinha tudo para ser a cópia do esquizofrênico já falecido? 
Julian tentou se levantar, um pouco tonto. A semelhança com Carter parecia mais notável. A pele de seus dois braços já não era facilmente avistada, já que tatuagens a cobriam por toda a extensão. As marcas em seu rosto indicavam justamente as diferenças que deveriam ser corrigidas. As fotografias na parede revelavam imagens de um corpo, um corpo sem vida. Um ser humano morto pelo próprio pai. 
Tudo fez sentido para Karlie. 
Os dois trocaram mais um olhar, enquanto o médico gemia de dor e gritava por socorro, sujando-se quase que completamente sua roupa branca com o sangue que jorrava de sua perna. Karlie percebeu que os olhos de Julian ficaram mais escuros, o verde pareceu brilhar de um jeito único. Um jeito que não pertencia a ele. 
- Qual é o seu nome, projeto de Carter Stone? - ela perguntou um pouco hesitante, preparada para a próxima reação de Julian. - Julian. E o seu? - ele respondeu calmamente, como se não estivesse passando por tudo aquilo. Chegava até a ser uma cena com teor cômico. 
- Karlie. Agora me explique tudo isso, antes que eu enlouqueça de vez. 
Julian tentou explicar o que sabia, enquanto recebia ajudar para descer daquela maca, se livrando de fios presos ao seu corpo. Vestia trajes simples e brancos, como os de alguém internado em um hospital. Karlie parecia embasbacada com tudo que ouvia, colocando apenas a cabeça para fora da porta para se certificar de que ninguém estava por perto. Arthur era doente. 
- Te surpreende o fato de eu ainda estar vivo? 
- Cara, nada me surpreende. Vem! - ela puxou a mão dele com força, colocando os corpos dos dois para fora. - Vou tirar você daqui. 
- Espere! - Julian a puxou para trás quando a mulher tentou correr. Ela bufou e parecia pronta para acertar um soco em seu rosto, mas algo na expressão do homem a fez parar para escutar. - Minha filha, preciso encontrar minha filha. Ela está presa em algum lugar, aqui dentro. Por favor... Eu preciso encontrá-la. 
- Tudo bem, que seja! Você tem alguma ideia de onde ela possa estar? 
- Não, mas Heather tem. 
- E vamos fingir que eu sei quem é Heather. - ela encarou o chão, de repente assimilando algumas coisas. - Uma loira com cara de Barbie? 
- Acho que sim... 
- Cassie! - exclamou, erguendo um dos braços como se agradecesse aos céus pela informação. - Vamos, gato, vamos curtir um pouco de ação! 
- Vamos lá, sweetheart
A mulher que até então tinha as costas viradas na direção dele cessou seus movimentos, virando seu pescoço na direção de Julian para comprovar se tinha de fato escutado aquilo. Um arrepio inevitável correu por sua espinha quando pôde jurar com todas as forças estar enxergando Carter a sua frente, mesmo que não fosse ele. Não era ele... Mas, com aquele olhar, poderia ser. 
- O que foi que você disse? - Karlie desafiou, cruzando os braços e medindo as expressões do homem que se suavizaram de repente. Ele pareceu confuso por um instante, como se não soubesse onde estava, como se tivesse perdido a noção de espaço e tempo.
- Eu disse: vamos lá, Karlie! - afirmou convicto, mesmo que convicção fosse uma palavra apagada em seu dicionário naqueles dias. 
- Não, droga! Você não disse "Karlie", você disse "sweetheart". 
- Não, eu não disse isso. 
- Ah, dane-se. - Karlie revirou os olhos e voltou a puxá-lo. Os dois corriam pelos corredores com olhos atentos e trocavam olhares algumas vezes. Julian tentava procurar pelo esconderijo que abrigava sua filha, enquanto Karlie tentava a todo o custo encontrar algum vestígio da mulher de cabelos loiros que poderia ser a única salvação naquele momento. 
Onde Arthur estava? 
Karlie puxou Julian pela gola da blusa quando percebeu que uma das portas fora aberta. Os dois se esconderam atrás de outra parede, fitando a mulher de cabelos pretos presos em um coque e que vestia um jaleco branco. Ela parou no meio do corredor para escrever algo em um caderno, e até sorriu durante esse processo. 
- O que vamos fazer? - Julian sussurrou. 
- Qual é, seu molenga, está com medo dessa coisinha ai? Vamos lá! - os dois revelaram suas identidades a uma Lexi que arregalou os olhos e recuou alguns passos. Desconcertada, a morena fitou o revolver segurado pelos dedos determinados de Karlie e ergueu uma das mãos, apontando para a porta que tinha acabado de sair. A ruiva não desfez sua pose de ataque, mas olhou para o que lhe era indicado e assistiu Lexi abaixar aquele mesmo braço erguido de antes e enfiar a mão bolso do jaleco, revelando uma única chave comprida e prateada. Pedindo atenção, ela levou a mesma até a fechadura sem dizer nada, os movimentos tão leves quanto os de uma pluma não entregavam a tremura em todo o seu corpo. Girando a chave, empurrou a porta, chamando Julian com um olhar terno. Sabia que aquilo se tratava de uma intervenção. De alguém tentando consertar as coisas. 
Julian hesitou, mas logo se encostou ao batente, fitando a garotinha que permanecia sentada no canto da cama com o rosto escondido nos joelhos, abraçando as próprias pernas. O som de soluços provenientes de um choro infantil e inocente obrigou o homem a dar um passo. Ele mal acreditava que aquilo estava acontecendo, não parecia real a ideia de que finalmente poderia ficar livre. Apagar aqueles dias como um simples pesadelo de uma madrugada fria qualquer. Olivia, como se conseguisse notar a presença do pai mesmo sem olhá-lo, mexeu minimamente o corpo e logo sentiu uma mão amiga afagar seus cabelos dourados e enrolados. A menina ergueu seu rosto e sem demonstrar qualquer outra emoção jogou o corpo contra o de seu pai. Do lado de fora, Karlie e Lexi apenas se encaravam, sem coragem alguma para manter algum diálogo. Enquanto uma pensava em meios de correr, a outra pensava em meios para atacar. Conseguiram identificar passos se aproximando, então Karlie ordenou a Lexi que não dissesse nenhuma mísera palavra, a obrigando a apertar o passo e se esconder atrás de uma porta. As duas respiraram aliviadas quando uma Cassie que segurava a testa com uma das mãos surgiu, um pouco confusa. 
- Você é mesmo surpreendente. - Karlie se revelou para a loira, que sem medo apenas parou de andar e fitou Lexi que surgiu ao lado da ruiva. - Agora faz parte do ninho de cobras, gata? Eu juro que sempre te achei um pouco víbora, mas isso é um tremendo exagero... 
- Olha aqui, sua... - Cassie ia começar, mas a voz insegura de Lexi cortou as duas. 
- Como podem ter a intenção de começar uma briga? Será que não percebem que essa é a nossa oportunidade de fugir daqui? Heather... 
- O nome dela é Cassie! - Karlie alertou em voz alta. 
- Tudo bem, Cassie... - Lexi reformulou o que pensava em dizer. - Não se lembra da conversa que tivemos ontem depois que conseguimos fazer com que o Julian visse a Olivia? Nós dissemos que faríamos qualquer coisa para sair daqui, até mesmo matar o brutamonte. - a morena torceu os lábios, demonstrando certo pavor. 
Karlie riu com gosto. 
- Vocês têm medo do Arthur? Ah, por favor... 
- Estamos prontos! - Julian surgiu com uma Olivia sorridente que segurava a mão do pai com força. Karlie fingiu que não era mais esquisito olhar para aquele homem e respirou fundo, levando um dedo até o queixo enquanto tentava pensar em algum plano. 
- Isso vai ser moleza. Eu já estive aqui, sei quais são os atalhos e as saídas camufladas. Ao trabalho pessoal! - Karlie ordenou a frente de todos, como se fossem seus soldados prontos para a guerra. Até mesmo Olivia pareceu um pouco intimidada. A ruiva não resistiu e soltou um risinho, de repente adquirindo um semblante angelical, até mesmo sonhador. Virou-se para os outros quatro que a encararam com certo receio - principalmente Lexi - e estralou os dedos. - Gente, nós somos os X-men! - como era possível ela encontrar tempo para comparações como aquelas até mesmo em um momento tão crucial? Apenas o silêncio fora a resposta do restante do grupo. - A Liga da Justiça? - ainda entusiasmada, Karlie arriscou novamente. Se houvessem grilos por ali, seria o único som presente. - Os Vingadores? - determinada, ela tentou outra vez, frustrando-se aos poucos pela falta de empenho do grupo. - A turma do Scooby Doo? - observando apenas Cassie cruzar os braços e revirar os olhos, Karlie grunhiu irritada, fechando as mãos em punhos e as largando na altura dos quadris, deixando os braços pendidos e tensos. - Cara, como vocês são chatos! 


Demetria's P.O.V

Londres

Poucas coisas apertam tanto no peito como a sensação do arrependimento após uma briga. Uma briga frívola, uma briga que poderia ter sido evitada. Eu não sabia mais onde encontrar meios para me livrar de toda aquela teimosia e impulsividade. Tudo que eu conseguia me forçar a fazer era ficar sentada naquela cama, fingindo estar bem para não preocupar minha mãe e Jamie, mas tudo que eu conseguia pensar era em pegar o celular e ligar para Joseph. Porém, naquele exato instante, consegui lembrar de seu pedido. Ele disse para eu não procurá-lo. E, mesmo que naquele momento não se tratasse de Valerie, eu desisti de ligar. Alguém deu uma leve batinha na porta e eu sorri ao inclinar o resto para ver de quem se tratava. Levantei-me quase em um pulo e pedi a minha mãe que entrasse de uma vez no quarto. Ela parecia hesitante, como se estivesse em duvida sobre dizer algo ou não. Fingi prestar atenção em algumas roupas desarrumadas sobre a cama e esperei até que ela encontrasse o melhor momento. 
Provavelmente era a segunda parte de uma conversa angustiante sobre meu tão odiado pai. Se bem que chamá-lo daquela forma era um insulto a tantos outros homens que dedicavam suas vidas ao bem estar daqueles que possuíam seu mesmo sangue. Chamar Arthur de pai seria como ofender Joseph da forma que mais dói, já que não era possível comparar o jeito como os dois tratavam seus filhos. 
- Querida, está ocupada? - ela perguntou insegura, sentando-se em um chaise ao canto. Apenas assenti, sem desviar minha atenção do que estava fazendo. - Eu omiti algo na última conversa que tivemos sobre aquele assunto. 
- E quer desfazer essa omissão agora, certo? - perguntei como quem não quer nada, entrando em meu closet e arrumando ali algumas das roupas. Ela esfregou as mãos de um jeito nervoso e me procurou com os olhos, deixando claro que não queria ter aquela conversa séria enquanto eu não estivesse olhando em seus olhos. Saí do closet e voltei a me sentar na cama, cruzando os braços e esperando. 
- Seu pai... Ele meio que deixou algo para você. Algo que só poderá receber assim que ele falecer. - pisquei meus olhos, sem muito interesse. Eu não queria nada que viesse dele. Nada. - Só que, como eu já expliquei da outra vez, esse "bem" que ele encaminhou a você não pertence ao Arthur, pertence ao Quentin, que é seu nome verdadeiro. Quentin era uma pessoa diferente, um homem bom, digamos assim. Então, depois que toda aquela loucura aconteceu... Ele se tornou outra pessoa. Eu até tentaria arriscar dizer que sofreu algum dano psicológico, talvez até esteja doente. - eu não queria olhar em seus olhos e dizer que era tolice arriscar dizer algo tão errôneo, já que maldade não tem nada a ver com doença alguma. Pessoas doentes procuram ajuda, não importa como.
- E você sabe o que ele deixou para mim, mamãe? - desisti de conter a curiosidade, a assistindo negar com a cabeça de forma evasiva, desviando o olhar. Sim, ela sabia, mas não queria me dizer. Preferi respeitar sua escolha. - Por que nunca me contou nada a respeito disso? 
- Parece justo importunar a vida de uma filha com assuntos que não pertencem a ela? Era o meu problema, Demetria. O problema cujo não encontrei solução, então fugi dele. Tudo bem que algo foi deixado para você, mas eu não queria no passado e até hoje não quero minha filha envolvida em algo que tenha pertencido a ele. 
Nossa conversa foi interrompida por Nancy, que timidamente deu uma batida na porta entreaberta e me avisou que alguém me esperava no andar de baixo. Uma garota de nome Charlotte, que parecia apavorada. Era a irmã de Joseph. Pedi desculpas a mamãe por interromper nossa conversa e saí do quarto, descendo as escadas rápido e pensando no que ela poderia querer naquele momento. Será que Karen tinha revelado seu grande segredo? A encontrei apoiada no batente da porta, mesmo de longe consegui avistar que suas pernas descobertas - já que usava a saia de seu uniforme - tremiam tanto que provavelmente ela não conseguiria andar normalmente até que conseguisse se acalmar. Seus olhos vermelhos e inchados entregaram o choro que deveria ter cessado há pouco tempo. Assim que me avistou, ela tentou dar um passo a frente e esfregou o rosto com as mãos, procurando por algo, talvez esperasse que Joseph estivesse comigo. Ainda em silêncio, reconheci que ela precisava se sentar, então apenas segurei sua mão e a guiei até o sofá mais próximo, me sentando ao seu lado. 
- O que aconteceu, Charlotte? - ela suspirou antes de pensar em alguma resposta, fungando e revelando uma expressão mais do que inocente. E muito, muito parecida com a de Joseph quando o mesmo estava triste. E foi só naquele momento que consegui desvendar aquilo. 
- Foi um erro ter vindo aqui, não foi? - neguei com a cabeça e chamei Nancy, pedindo a ela que trouxesse algo para a garota beber e se acalmar. Logo a mesma retornou com uma bandeja que sustentava duas xícaras, provavelmente com chá de camomila. - Mas eu não podia ir para a minha casa agora... - perdida em suas próprias palavras e sentindo o choro retornar a subir por sua garganta, ela virou o rosto e fechou os olhos. - Tem um cara me perseguindo, um cara que me vende drog... - cortou sua fala, percebendo que não seria apropriado revelar. Eu apenas fingi não saber que ela mencionaria drogas. 
- Ele tentou algo contra você? Charlotte, por favor, não esconda nada, caso contrário não poderemos te ajudar e... 
- Não, ele não conseguiu fazer o que queria. Por muito pouco. O desgraçado fica dizendo que eu lhe devo muito, que apenas dinheiro não vai pagar minha dívida. Eu estou com medo! - me surpreendendo, ela procurou por algum tipo de consolo, aproximando seu corpo e deixando claro que gostaria de ser abraçada. Um pouco sem jeito, passei meus braços por seus ombros e olhei para cima, pensando no que fazer. Eu não me encontrava arrependida por ter acolhido ela naquele momento, mas simplesmente não sabia qual iniciativa tomar primeiro. 
- Fique calma, fique calma. Aqui você está segura. Quer que eu ligue para a sua mãe? 
- Não, ela não pode saber disso! Onde o Joseph está? Tenho que falar com ele, ele vai me entender. 
Sim, eu teria de ligar para meu marido, por mais que o orgulho tentasse me fazer mudar de ideia. Não era justo com Charlotte negar ajuda apenas pelo fato de que nós estávamos brigados. A garota realmente parecia a beira do desespero, e eu não conseguiria vê-la presa naquele choro baixinho por mais tempo, me cortava o coração. 
- Eu vou ligar para ele agora mesmo, ok? Venha comigo. - sorri, tentando lhe transmitir calma e me levantei, a ajudando a fazer o mesmo. - Que tal ver o Matt? - ela deu um sorriso mínimo, e eu a acompanhei. Joe tinha me contado o quão encantada ela tinha ficado pelo pequeno. Charlotte concordou e me seguiu. - Isso com certeza irá lhe acalmar um pouco. 

/Demetria's P.O.V


Joseph desceu de seu carro após estacioná-lo a alguns quarteirões seguros de distância e começou a caminhar pelas ruas esburacadas, comprovando que se tratava de uma região humilde, precária. As casas de formatos iguais e grudadas umas as outras - algo completamente familiar por aquele país - transbordavam aparência melancólica. Era um ambiente monocromático, aparentemente sem qualquer resquício de felicidade. O nó no estômago era inevitável àqueles que possuíam coração. O olhar afrontado de Joseph parecia adquirir o mesmo tom apagado daquele lugar a cada novo passo que dava. Os olhos verdes procuravam atentos por algo circulando por ali. A inquieta certeza de que deveria continuar hesitante o fez congelar o corpo e olhar para trás, sentindo uma brisa repentina levar os curtos fios de seu cabelo despenteado para trás. Algumas senhoras com lábios fechados em linhas retas surgiam nas janelas, como se conseguissem sentir o perfume tão distinto daquele homem, que por sinal também parecia uma peça solta no meio de todo aquele aparente caos. Joseph enfiou as mãos frias nos bolsos da jaqueta preta de couro que usava, mantendo o olhar baixo, porém sem permitir que sua expressão entregasse qualquer tipo de fraqueza. Ele não sentia medo por estar ali, não era algo que seria capaz de surpreendê-lo. Quando sua esposa ligou para ele, Joseph realmente acreditou que era para pedir desculpas ou simplesmente para manter uma conversa calma e deixar de lado a briga de horas antes, mas tudo que a mulher com uma voz fria disse foi que Charlotte precisava de ajuda. Ele não sabia explicar, mas sentiu que precisava ajudar a meia-irmã. Aliás, chamá-la de meia-irmã soava tão errado, tão frio. Se as palavras se Karen eram mesmo verdade, Charlotte era apenas sua irmã, sem nenhuma outra palavra que pudesse embaçar o significado daquela denominação. Ignorando a vontade de fumar, pois já tinha parado há algum tempo e não cederia tão facilmente, ele mudou de direção, indo parar em outra rua, essa com um aspecto ainda pior do que a anterior. Era incrível como os flashes de memórias apagadas vinham em sua mente, como aquele lugar ainda era capaz te lhe trazer lembranças tão amargas. Quando adolescente, o adolescente estúpido e com a cabeça fora do lugar, sempre ia parar um dos becos que contornavam aquelas ruas acinzentadas, na maioria das vezes para comprar drogas. Em outras apenas para ameaçar alguém. Ele se lembrava de ser constantemente temido por aquela região. Não pelo fato de ter dinheiro, mas pelo fato de conhecer pessoas muito perigosas naquela época. E, principalmente, sua pose que dizia "não tenho medo de morrer" era o que mais incomodava aos traficantes ou simples delinquentes, que se afastavam e procuravam manter sempre uma distância segura. 
Ainda não tinha criado laços com Charlotte, ela nem mesmo desconfiava ter um irmão mais velho, porém Joseph sentia que aquela era a sua obrigação. Tinha a obrigação de ser um homem forte e guerreiro que lutava para proteger seus entes queridos, sua família. O pensamento recorrente de ser um exemplo. A necessidade constante por bancar o super-herói talvez fosse consequência do fato de que antes não tinha ninguém para lutar por ele. Então, ele lutava pelos outros, porque não queria que sofressem na pele o que ele já tinha sofrido. Completamente desprovido de medo, ele encontrou o que achava estar procurando. Era a maior casa da rua, com dois andares. Apesar da pintura precária e descascada, era a única da região que parecia emitir algum tipo de conforto. Isso era apenas visível pelos diversos vasos de flores que repousavam em cima de uma janela larga de madeira, que revelou apenas os olhos curiosos e assustados de um garotinho de cabelos ruivos e encaracolados. Joseph o olhou por um instante e apenas permitiu que um sorriso fraco e sem mostrar os dentes branquíssimos fosse desenhado em seu rosto. Esperou mais um pouco, até que por fim um homem de aparência desleixada e expressão ranzinza saiu pela porta, parando no mesmo instante que deu de cara com o outro. Jonas manteve a pose indiferente e ainda assim severa, não desviando o contato visual. Era ele. Apenas com a descrição afobada de Charlotte, Joseph já foi capaz de se lembrar. Aquele ela Bernard, o traficante que sempre trazia o que o garoto Joseph tanto lhe pedia. As drogas que quase o expulsaram daquele mundo, arrancando totalmente sua vida. É claro que estava mais velho, porém o longo tempo que passou não pareceu mudar em nada a estranha aflição que ele demonstrava quando enxergava Joseph. Se ele soubesse com quem estava lidando... Se ele soubesse que quase colocou suas mãos sujas na irmã do homem que temia. 
- Olá, Bernard, quanto tempo! - Joseph começou, observando o outro dar um passo vacilante a frente. 
- Veio procurar drogas depois de tanto tempo? - Bernard perguntou, tentando disfarçar o receio. 
- Não, estou aqui para procurar a razão que o motivou a ficar perseguindo uma garota inocente. - Joseph escutou uma risada, ficando furioso de repente. Aquele clima sombrio mexia com suas emoções, como se ele levemente conseguisse incorporar um bad boy novamente. Mas não se tratava mais de um garoto, era um homem que estava ali. Um garoto ameaça, um homem cumpre
- Você conhece aquela vadiazinha? - Joseph respirou fundo e deu passos violentos até Bernard, o segurando pela gola da camisa velha que usava e chocando seu corpo contra a parede, acidentalmente fazendo com que um dos vasos de flores atingisse o chão. O conjunto de imagens em sua mente não lhe fazia muito bem. Talvez estivesse sendo equivocado por querer proteger tanto a garota, mas pensava que poderia se tratar de qualquer outra mulher. O desgraçado do Bernard poderia tentar algo contra qualquer outra mulher. Até mesmo contra sua esposa Demetria, caso a conhecesse. 
- Olha como você fala... Ela é minha irmã! - o outro homem de cabelos castanhos pareceu se surpreender um pouco, pedindo amigavelmente que fosse solto e assim conseguindo, ele ergueu um dedo para tentar se explicar. Mas Joseph foi mais rápido e objetivo. - Eu não quero saber o que você tem para dizer, só vim avisar que não tenho medo de deliquentes da sua espécie, que procuram assustar sempre os que não encontram saída para a defesa. Você se lembra daquele garoto que um dia quase colocou sua vida em risco? - Bernard apenas concordou. - Ele cresceu. E não pense que continuo sendo aquele verme, porque não sou... Mas não mecha com a minha família, pois você também tem uma. - Joseph enxergou o garotinho ruivo na janela novamente. - E, me diga, Bernard, sua mãe ainda tem todos aqueles problemas? Ainda sofre com a depressão e precisa tomar vários remédios? 
- Por que acha que continuo nessa vida miserável, Joseph? - ele conseguia se lembrar do nome do outro homem, o que o surpreendeu um pouco. - Se eu parar de vender drogas, não terei dinheiro. Se eu não tiver dinheiro, as coisas ficam feias por aqui. 
Tempos antes, provavelmente Jonas diria que não se importa e apenas acertaria o rosto do homem com um soco carregado por força excessiva. Mas, naqueles dias, ele queria pensar de forma mais madura. Aproveitando-se do fato de que ainda era temido por ali, retirou um simples pedaço do papel do bolso da jaqueta e entregou para Bernard, que analisou sem entender nada. 
- Não quero ter notícias da sua existência novamente, quero que pare de perseguir minha irmã. Nesse papel tem o endereço de alguém que talvez possa te ajudar com um emprego. - Joseph ameaçou dar meia volta e se afastar, mas retornou e apontou o dedo indicador na direção do outro. Como um aviso prestes a ser dado. - Entenda que estou fazendo isso apenas porque também tenho filhos e sei como crescer sem um pai pode arruinar a vida de alguém. Não desvie os olhos do perigo, Bernard, e não deixe aquele garoto sofrer com a vergonha de ter um perdido como pai. Estamos combinados? 
Um gesto afirmativo de cabeça fez Joseph se mostrar satisfeito pelo acordo. Não pensou que seria tão fácil, mas felizmente conseguiu. Enquanto se afastava, analisava novamente todo o caminho que já tinha traçado mais cedo. E precisou admitir a si mesmo: como era bom não precisar mais de tudo aquilo. Como era bom ter se libertado da escuridão que antes era a grande companheira de seus dias. 


Nova York

Ainda procuravam por alguma saída, enquanto faziam questão de manter conversas vagas e sem sentido como se fosse apenas um grupo de melhores amigos. Karlie começava a se frustrar por toda a falta de adrenalina. Olhou severa para Cassie, como se perguntasse em silêncio se aquela não seria uma armadilha, mas ainda parecia absurdo demais alguém como ela fazer parte do lado negro. Tinha que existir uma boa explicação. Pelo caminho, tiveram a sorte de encontrar submetralhadoras penduradas em suportes nas paredes. Verificaram se seria possível usá-las e pegaram duas, continuando seu trajeto sinuoso em seguida. As luzes de repente começaram a piscar, todas elas. Uma a uma perderam sua força, obrigando todos eles a olharem para os lados. Lexi continuava a agarrar aquele caderno com força, fazendo os outros questionarem o que poderia ter de tão importante ali senão apenas anotações perturbadas encomendadas por um louco de nome Arthur. 
O lugar em que estavam consistia em outro corredor, esse com saídas laterais barradas por paredes de vidro e uma porta em seu início e outra em seu fim. Um tipo de alarme alto e irritante ressoou, obrigando Olivia a tampar os ouvidos. Em um rompante, as duas portas deslizaram para lados opostos e sumiram através de rupturas nas paredes. Os cinco aproximaram seus corpos, protegendo de qualquer jeito a menor, que se escondeu por entre a barreira de corpos que fora formada ao seu redor. 

(Coloque a terceira música para tocar!)
Olhos verdes impetuosos se ergueram e atingiram o grupo de forma assustadoramente espetacular, quase que sobrenatural. 
Arrepios correram livres pelos cinco corpos, a sensação insuportável de que estavam diante da própria morte. Um Arthur de vestes pretas e aquele familiar sobretudo negro que acompanhava os movimentos brutos de seu corpo se revelou por trás da porta de saída, segurando os batentes com as duas mãos, sem mover qualquer outro músculo. Ele ignorava os outros, olhava apenas para Karlie, que engolia em seco e sustentava o olhar sem receio. Pela outra porta, do outro lado, como se Arthur tivesse sido capaz de calcular aquela escapatória, cinco homens surgiram. Suas vestes eram semelhantes às dele, mas não contavam com o sobretudo. Os cinco levaram a mão direita até o bolso da calça escura, revelando que portavam armas. Revelando que as portas do inferno são resistentes demais para se tentar escapar. Karlie, Cassie, Lexi, Julian e Olivia estavam bem no meio da linha de fogo. 
Arthur parecia um ser indestrutível, um Deus imortal que não sofreria abalo algum, independente de como fosse atacado. Ele continuava a sustar o olhar receoso de Karlie, que poderia até ter se transformado em uma estátua, tamanho o esforço que fazia para não se mover. Os outros apenas tentavam controlar o medo, pensando em formas de barganhar por sua liberdade. 
- Pelo amor de Deus, tem uma criança aqui! - Lexi disse chorosa e inconformada com a situação, tentando proteger o frágil corpo de Olivia atrás do seu, mas os outros homens de coração frio não faziam questão alguma de levar aquele fato em consideração. 
- E aí, Arthur! - Karlie de repente teve um estalo, movendo-se enquanto os outros a olharam abismados. Os cinco homens se aproximavam em passos lerdos, assustadores. As luzes que piscavam contribuíam para um clima que não poderia ficar mais tenebroso. 
- Eu estava esperando por isso, Scarlett. 
- Meu nome não é Scarlett, e você sabe muito bem disso, seu maldito! 
- Não vai importar qual é o seu nome quando tudo que restar de você será apenas uma carcaça que apodrecerá com o passar do tempo. 
- Claro! - Karlie bateu palmas, sorrindo abertamente. - Exatamente como aconteceu com o filho que você matou. 
- Cale-se! - o homem deu um passo, pronto para feri-la. 
- Arthur Sheppard está irritado, Arthur Sheppard se feriu com as minhas palavras. Oh, meu Deus! Vocês viram isso? - ela se virou para falar com os outros, até mesmo com os capangas de Arthur. O ar frio pareceu sofrer uma leve alteração, como se alguém estivesse executando algum movimento brusco perto de seu corpo. Karlie não precisou ver, ela apenas sentiu. E foi capaz de barrá-lo antes que o punho cerrado de Arthur acertasse em cheio sua cabeça. Virou o corpo com maestria, barrando a mão dele com a sua. Os dois mantiveram os corpos tensos, enquanto a ruiva tentava buscar forças em qualquer canto possível. Arthur manteve os olhos semicerrados e uma sobrancelha erguida, destinado a matá-la com as próprias mãos. 
- Agora me arrependo por ter lhe treinado tão bem. 
- Se arrependa por ter nascido, cara! - ela rebateu, tentando camuflar o gemido que dor que se formava em sua garganta. Não aguentando mais, rompeu o contato brusco entre os dois e abaixou o corpo para evitar receber um soco, então deu dois passos para trás e se colocou de pé novamente. - Agora que eu sou rica, posso chutar seu traseiro com um sapato de milhares de dólares! - provocou, conseguindo arrancar apenas um sorrisinho de canto do mais velho, que fez um breve sinal para que seus homens continuassem parados, apenas esperando. - O que acha disso? Vou denegrir sua imagem de homem, meu caro Arthur? Mais alguns segundos de golpes inúteis foram desperdiçados, até que Arthur conseguiu segurar um dos pulsos da mulher, o apertando com força e obrigando seu corpo a se virar. Com as costas pressionadas contra o peitoral dele, ela travou sua mandíbula e começou a impulsionar os músculos de suas pernas para baixo, como se quisesse adquirir força extra para uma defesa planejada. Arthur virou-se de costas para os outros, obrigando a mulher presa por seu enlace violento a caminhar em direção a outra porta. Karlie fitava com olhos que lacrimejavam as paredes de vidros nas laterais dos extensos corredores. Sabia que elas levavam a algum lugar. 
- Eu vou te apresentar o gosto de chamar de inferno, sua bastarda miserável. - Arthur rosnou próximo ao ouvido de Karlie, que já sentia uma fina cama de suor em sua testa. Fechou os olhos com força. Não seja a garota fraca, não seja a Karlie do passado!, ela tentava dizer a si mesma quando a vontade de chorar a abatia. 
- E eu vou te apresentar as consequências por ensinar o que sabe a desconhecidos. - uma voz surgiu atrás de ambos, tão determinada que não parecia pertencer a sua dona. Incerto, Arthur virou apenas o pescoço, sendo surpreendido por uma Cassie que não se importava com possíveis armas apontadas para seu corpo. Ela não tinha nada mais a perder mesmo. 
Arthur recebeu um golpe, um golpe desajeitado, mas que fora o suficiente para fazê-lo perder o equilíbrio e dar a oportunidade de Karlie abaixar seu tronco, livrar-se do aperto em seus braços, erguer uma de suas pernas para trás e no mesmo instante virar o tronco, acertando o abdômen do homem em cheio com o salto fino de sua bota. Ele caiu no chão, segurando o local que certamente estava ferido. Era o mesmo local em que acertou seu filho com um cruel tiro. 
- Nenhum de vocês quer nada disso, eu sei que não. - Karlie gritou para os capangas, que estranhamente cessaram seus movimentos por instantes, como se fizessem uma pausa de toda aquela confusão para refletir. - Todos vocês tem plena certeza de que nada por aqui garante futuro algum. Mas parece que estão cegos... - sorriu discretamente quando suas palavras surtiram efeito naquelas pessoas, as distraindo por um tempo. - Afastem-se! - a ruiva berrou para Lexi, Julian e Olivia, que se abaixaram enquanto as outras duas mulheres engatilharam suas armas e começaram a disparar uma vez atrás da outra, conseguindo ferir dois dos cinco homens. Enquanto os três tentavam se proteger e revidar, as duas fitaram uma das paredes de vidro e depois se entreolharam sorridentes. Correram até as outras três vítimas e protegeram os corpos delas com os seus, já que não eram nem de longe frágeis para o momento. - No 3, Barbie. 1... 
- 3? Você é lerda o suficiente para esperar todo esse tempo? Agora! - Cassie gritou, voltando a disparar em direção a superfície lisa de um vidro que foi recebendo as balas disparadas aos poucos. O cheiro de pólvora cada vez mais forte e insuportável, irritando suas narinas e tornando o simples ato de respirar mais difícil do que o recomendado. 
- Corram! - Karlie ordenou, disparando mais alguns tiros no vidro, a fim de descarregar a submetralhadora completamente. Parecia ser blindado, ou contar com uma proteção ainda mais superior. Já não importava se Arthur os perseguia, eles não se davam ao luxo de olhar para trás. Todos corriam, corriam em direção ao vidro que ainda continuava ali, erguido, a curta distância deixava de existir aos poucos. O tempo teria de ser um amigo, não um inimigo. - Protejam o rosto! - todos fizeram o que Karlie pediu, enquanto ela tomou a arma das mãos de Cassie e obrigou seus dedos a puxarem os dois gatilhos com toda a força residente em seu ser. 
O material resistente foi se trincando aos poucos, pedaço por pedaço, até que um barulho estridente denunciou que não restavam mais recursos para suportar. O vidro começou a ceder, desmanchando-se em pequenos fragmentos que despencavam e tocavam o chão escuro aos poucos. O grupo tentava manter seu rosto protegido, já sentindo o material entrar em contato com seus corpos. Pisando sobre aqueles cacos escorregadios que se desintegravam de vez, eles tentavam não escorregar e cair, pois seria terminantemente fatal. Então, como uma explosão, estilhaços foram jogados finalmente para todas as direções, atingindo certeiramente a todos eles, que corriam e corriam até que conseguiram finalmente cruzar a barreira arruinada. 
A saída parecia próxima, uma luz ao final de um túnel que tentou convencer ser interminável. Eles já se entreolhavam e trocavam risinhos, cantando vitória antes da hora. Muito antes da hora. Karlie olhou para trás por precaução e avistou os outros três homens que tentavam alcançá-los. A adrenalina do momento a motivou a ordenar que seus companheiros prosseguissem, enquanto parou e verificou quantas balas ainda tinha. Poucas. 
Um dos homens ergueu seu revolver e mirou um tiro certeiro em um aparente compartimento acima das cabeças dos outros que se afastavam, porém procuravam preocupados por Karlie. Um barulho estranho cercou o local, como se algo estivesse prestes a desmoronar. Enquanto a ruiva lutava com um dos capangas, sentiu algo cair em seu ombro. Um pequeno pedaço de algo que lhe lembrou lascas grossas de madeira. 
- Cuidado! - ela teve apenas tempo suficiente para gritar antes de ser atingida por um soco em seu estômago, caindo de joelhos no chão. O teto falso que sustentava barras finas de metal, pequenos pedaços de madeira, cimento e algumas armas já não usadas mais recebeu apenas outros dois tiros e cedeu, deixando evidente que se tratava de uma notável armadilha para fugitivos. Julian e Cassie tentaram se proteger, os dois se refugiaram do outro lado do corredor, protegidos pela outra parte do teto, que não cederia tão facilmente. 
Lexi segurava a mão de uma Olivia chorosa, que mesmo com toda a sua inocência tinha a capacidade de perguntar a si mesma "chegou a minha hora?
- Vá, corra! Corra! - Lexi pediu a ela, percebendo que não existia tempo o suficiente para que as duas conseguissem escapar. 
Pedaços e mais pedaços de uma armadilha pesado desmoronavam sem pausa alguma. Olivia tentou puxar a mulher, que deixou seu caderno cair no chão com lágrimas presas aos olhos. 
- Olivia! - Julian gritou, chamando a filha com um aceno desesperado enquanto Cassie já se desmanchava em lágrimas. Karlie não conseguiu se livrar do maldito homem que a prensava contra a parede, apertando sua traquéia com os dedos fortes. Determinado a enforcá-la. 
- Corra, querida! - Lexi pediu uma última vez, assistindo a pequena Olivia deixar uma lágrima cair por seu rosto e correr, correr e correr até que não resistiu e acabou tropeçando, sendo puxada pelos braços fortes do pai que a protegeu. 
- Lexi! - Cassie gritou, protegendo o rosto quando uma nuvem de poeira se alastrou por todo o ambiente. A resistência cedera por completo, formando ali pequenos escombros que escondiam o corpo de uma mulher inocente. Talvez viva, talvez morta. Karlie conseguiu se livrar daquele maldito enforcamento e segurou os dois ombros do homem com força, o empurrando com fúria, arrancando sangue de seu nariz que se chocara ferozmente com a parede. Depois, não encontrando qualquer outro obstáculo, limpou o suor da testa e olhou atônita para os escombros, enxergando apenas uma mão exposta. E próximo a essa mão, um caderno repousava no chão sujo. 
Julian deixou sua filha com Cassie e escalou o monte de armadilhas massacradas, tentando ajudar Karlie a remover pedaço por pedaço, até que conseguissem retirar Lexi dali de baixo. Felizmente conseguiam ouvir o choro dela, sinal de que ainda restava esperança. Karlie pegou o caderno e jogou com força para o outro lado, para que Cassie o pegasse. Depois de incessantes minutos de esforços para mover aquele peso, conseguiram finalmente encontrar uma maneira de livrar a outra mulher daquele apuro. Mas sua situação não era boa. Sangue dominava seu jaleco que um dia fora branco, ela gemia de dor e não conseguia se mover. Provavelmente tinha quebrado algum osso, ou vários. Talvez até algo de gravidade mais elevada. Os dois juntos a seguraram e ergueram seu corpo, enquanto Cassie tentava separar os escombros para dar lugar a um caminho que pudessem passar com o ser já desacordado e terrivelmente ferido. 
Logo estavam fora, observando petrificados um beco vazio e pouco iluminado pela luz do dia. 
- Ela está morrendo... - Cassie dizia aos prantos, tentando virar o corpo de Olivia para que ela não enxergasse todo aquele sangue. 
- Vamos, vamos logo. Podemos levá-la até um hospital, eu estou com meu carro próximo daqui. - Karlie explicou ofegante. Julian carregava cozinho o corpo de Lexi, enquanto a outra mulher os guiava até seu carro. Depois de no máximo dois minutos de uma corrida insuportável, encontraram o veículo e se esconderam ali dentro. Karlie pisou fundo no acelerador e saiu cantando pneus, não se importando com os sinais vermelhos que eram deixados para trás. 
O que os esperava era uma mistério, uma duvida que crescia no anterior dos quatro seres de consciência intacta. Eles torciam para que o outro, aquele com a consciência perdida, resistisse mais algum tempo. A vida era a prioridade, por mais que a morte parecesse sempre tão evidente a cada nova curva que Karlie driblava furiosamente. Tanta desventura acumulada em apenas um lugar.

Is it bright where you are?
Have the people changed?
Does it make you happy you're so strange?
And in your darkest hour, I hold secrets flame
You can watch the world devoured in it's pain
Strange.



Londres

Demetria saiu de casa ao entardecer, um pouco incomodada pela fina e fria garoa que caia, arruinando seus cabelos penteados. Porém, ela balançou a cabeça repreendendo a si mesma, afinal, estar com o cabelo molhado não seria o grande problema. Vestia um sobretudo vinho bem quentinho que escondia um vestido bege de mangas longas, tecido que lembrava uma fina lã e justo ao corpo, com uma meia-calça preta e grossa aquecendo suas pernas. Nós pés, saltos pretos nem tão altos e nem tão baixos. Não fazia muito sentido se arrumar exageradamente, seu encontro não era com Joseph, nem com grandes amigas ou amigos... Era com alguém que odiava. 
Apenas quando chegou perto o suficiente da rua, percebeu que Joseph estava dentro de seu carro estacionado em frente ao grande portão. Ele suspirou sem olhar para ela, encarando os vidros úmidos. Não acreditava que aquela mulher era teimosa o suficiente para não ter nem tentado repensar na situação. O que custava deixar Valerie de lado? 
- Pensei que mudaria de ideia. - ele confessou visivelmente aborrecido, sem vontade alguma de olhá-la. Tinha medo dela estar bonita demais e não resistir, acabar a obrigando a entrar no carro e ficar ali com ele. Não seria nada difícil. 
- Eu não posso, Joseph. - comentou exasperada, um pouco cansada das tentativas frustradas dele de convencê-la a ficar. Precisava ter mais confiança nela. - Eu tenho que afastá-lo. Por favor, me deixe fazer isso... Eu necessito que tente compreender. - Jonas conseguiu distinguir o tom melancólico na voz da mulher, como um pedido incessante para que ele aceitasse que ela só ficaria bem se fizesse o que pretendia. Se odiou naquele momento por ser fraco quando o assunto era ela, por simplesmente não conseguir negar qualquer mísero capricho ou loucura de Demetria. Estava perdido. 
- E se eu pedir para você ficar? Pedir não... Implorar? - os olhos verdes de Joseph a atingiram com empenho, quase conseguindo deixá-la desnorteada o suficiente para ceder ali mesmo e cair sentada na calçada. Uma irresistível mistura de tristeza com sedução enriquecendo os traços do homem. Demetria respirou fundo e negou com a cabeça, motivada a resistir. 
- Não precisa fazer isso. - ela soltou um risinho desconfortável. - Agora entre, está frio aqui agora. - foi a vez do homem rir, se divertiu com o fato dela tentando fazer parecer que o frio poderia prejudicá-lo de alguma forma, como se fosse frágil para deixar de fazer o que precisava fazer devido a uma simples mudança climática. - Eu sei me cuidar, não se esqueça que tive um excelente professor que me ensinou a lutar boxe direitinho! - a mulher mostrou seus punhos erguidos e fingiu estar executando golpes de boxe, arrancando um sorriso involuntário do homem. 
- Sim, teve. - ele sorriu com a lembrança das divertidas aulas. - Então eu vou com você! - disse determinado, abrindo a porta do carro. Demetria negou com a cabeça e preparou as mãos, caso ele se aproximasse. Barrá-lo seria a única saída. O difícil era descobrir se, com todo aquele frio, resistiria e afastaria um corpo quente que insistia em se aproximar do seu. Tentador demais. 
- Não, não vai. Não quero que a Valerie te veja. - ela olhou distraída para as unhas, indiferente. 
Ciumenta! - Joseph lhe lançou um olhar sedutor ao sussurrar a palavra. Aproximou-se um pouco mais e segurou o queixo dela, o erguendo com o auxílio de seu dedo indicador. Apesar do momento descontraído entre casal, conseguia notar a inquietação misturada com tristeza no rosto corado de Demetria. - Eu lamento informar, mas tristeza não combina com o seu rosto tão lindo. - falou de maneira galante, com a voz baixa e rouca que tinha poder suficiente para derreter o orgulho de qualquer uma. Mas era apenas nela que ele estava interessado, é claro. - Mude isso ou eu vou mudar por você. E, mulher, você sabe que quando quero te fazer sorrir, eu consigo. - Demetria optou por não responder, apenas concordou com a cabeça e ameaçou encostar seus lábios aos dele, que mordeu o lábio com furor e um pouco de decepção quando descobriu que a intenção dela não era beijá-lo, apenas distraí-lo para conseguir dar um passo a frente e se afastar. E não foi capaz de impedir, assistiu sem mover músculo qualquer enquanto a mulher adentrava seu carro e sumia aos poucos pela rua molhada que se acostumava com a noite que logo chegaria. 

Estacionando o carro, ela comemorou mentalmente pela garoa ter se dissipado e abriu a porta, expondo o corpo aquecido àquela temperatura tão diferente da que aproveitava dentro do veículo. Esfregou as mãos para aquecê-las e ergueu a cabeça com determinação, conformada de que estaria disposta a situações desconfortáveis como aquela para poder respirar com total alívio depois de tanto tempo. Lentamente, começou a andar, pois ainda faltava um bom caminho até o endereço de Valerie. Ela gostava de andar quando queria pensar, parecia conseguir fazer isso do jeito que queria apenas quando podia andar livremente por aí sem ser interrompida por nada ou ninguém. 
Demetria se encontrava desprotegida de todos os olhares; homens, que faziam questão de virar o pescoço para olhá-la; e mulheres, que simplesmente analisavam suas roupas e desviavam o olhar. Ela podia esconder qualquer coisa. Com os olhos firmes, os passos bem estruturados e um belo rosto, ninguém seria capaz de desvendar todas as infortunidades da vida daquela jovem mulher. Ninguém sabia o que escondia. Ninguém sabia que já era mãe, casada... Ninguém sabia que muitas vezes era o amor que movia seu corpo. E ninguém precisava saber que às vezes o responsável por aquilo era o ódio. Os olhos bem desenhados procurariam seu alvo. Os lábios de bom volume e em um tom rubro espalhariam a notícia de que ela não deixaria nada impune. As pernas chamativas a olhares masculinos - mesmo quando cobertas - se movimentariam e assim seus pés a levariam até onde queria. Com as mãos, que às vezes ela fazia questão de olhar apenas para contemplar a aliança presente na esquerda, lutaria. A manteriam firme em sua luta a qualquer curto. Demetria Jonas: mais fraca do que conseguem enxergar, mais forte do que podem prever. 

Sem que percebesse, já estava diante do endereço que lhe fora passado. Com receio e engolindo em seco, tocou a campainha e esperou, olhando para trás e para os lados, tentando encontrar algum suposto perigo. Não demorou para que a porta se abrisse, revelando uma sorridente Valerie que tinha os cabelos loiros presos em um coque firme e um vestido roxo de mangas longas e gola alta cobrindo seu corpo magro. Ela apenas deu espaço para que Demetria entrasse, sem dizer mais nada, apenas manteve o sorriso que aparentava imensa falsidade. A mulher entrou um pouco insegura, torcendo para Sean estar ali dentro também. Pelo menos ele não parecia um psicopata. Valerie indicou uma porta do outro lado da extensa sala de estar, disparando a andar e deixando os saltos de seus sapatos de salto ecoarem pelo chão tão limpo e brilhante. Demetria a seguiu, indo parar no que parecia ser uma suntuosa sala de jantar, com uma extensa mesa completamente vazia. Valerie sentou-se na cadeira de um dos cantos, pedindo com um gesto amigável de mão que a mulher que a olhava um pouco desconfiada fizesse o mesmo e se sentasse na cadeira do outro lado. Assim que o fez, Demetria encolheu um pouco o corpo e continuou a procurar por sinais que comprovariam a presença de outra pessoa ali. Nada. 
- Pedi que a empregada fizesse um bom chá para nós. - Valerie começou desfazendo seu sorriso, mas sem permitir que seu semblante se tornasse fechado demais. Notando a impaciência deDemetria, a loira bufou disfarçadamente e sorriu abertamente quando assistiu a empregada surgiu no cômodo com seu tão adorado chá. Demetria olhava para aquele líquido escuro com uma sobrancelha erguida, a certeza absoluta de que nem mesmo tocaria na xícara. Era arriscado demais, poderia até mesmo explodir! 
- Seja direta. - simplesmente pediu a loira, que deu um longo gole em seu chá e fechou os olhos para aproveitar o sabor melhor, balançando uma das mãos como se pedisse tempo a outra. 
- Tão impaciente quanto o pai. - Valerie comentou descontraída. 
- Não ouse me comparar com ele! - mas Demetria ralhou em resposta. 
- Tudo bem. Vejamos... O que podemos fazer? Envenená-lo? Esquartejá-lo? - Valerie estralou os dedos. - Ou simplesmente mandá-lo para um avião que esconde uma bomba! - Demetria arregalou os olhos para toda aquela empolgação assassina e escutou a risada alta de Valerie penetrar sua audição. - Não fique assustada, eu não sou insana o tempo todo, querida. Só quando preciso ser. 
- O que você tem para me ajudar? - Demetria foi breve e objetiva mais uma vez, tamborilando os dedos impacientes contra o material escuro e resistente da mesa, fazendo o líquido que já esfriava na xícara ao seu lado se agitar incessantemente. 
- Você tem conhecimento de que seu pai é o tipo de pessoa que só para de atormentar os outros quando conseguem atormentá-lo ainda mais, certo? Já ouviu falar de um tal de Quentin Wright? Bom... Vamos supor que o querido Arthur odeia quando a vida desse homem é mencionada perto dele. - a loira soltava as palavras imitando o semblante inocente de uma criança, como se não quisesse chegar a absolutamente lugar algum. - Quentin deve ter todo um passado, um passado bem mais limpo que o de Arthur, é claro. Eu até sei algumas coisas sobre isso... Se quiser, posso informá-la. Mas antes... - Valerie se levantou e deu passos determinados até Demetria, parando ao seu lado e fitando a xícara intocável. - Beba seu chá. - pediu com a voz baixa, porém autoritária. 
- Estou bem sem chá, obrigada. 
- Beba seu chá, querida. 
- Eu não quero! - Demetria ergueu seu tom de voz, levantando o rosto e adotando feições aborrecidas. Mas logo as mesmas se suavizaram apenas para que pudessem se repuxar em uma típica expressão de pânico. Um repentino frio em seu estômago a deixou enjoada, forçando sua visão a procurar pela saída mais plausível. Na velocidade da luz, rápido demais para impedir, Valerie havia retirado um objeto reluzente e cortante de dentro de um dos bolsos quase imperceptíveis de seu vestido, o aproximando cada vez mais da jugular de Demetria. A mulher sentada congelou seus movimentos e manteve os olhos fixos a sua frente, desesperada porque nem mesmo um simples garfo estava ao seu alcance. A xícara fora empurrada para mais perto, juntamente com um olhar malignamente terno de Valerie, que parecia calma demais com o que fazia. 
- Agora beba. Não vai te matar, mas isso... - mostrou a pequena faca, a chacoalhando no ar e por fim tocando o pescoço de Demetria com ela, deixando que a mulher sentisse um arrepio correr por seu corpo juntamente com a sensação de algo gelado roçando em sua pele. - Com certeza vai. 
Sem saída, desejando chorar loucamente por não ter escutado Joseph, Demetria insistiu em procurar por uma última vez ao redor daquele cômodo. Não era ingênua, já tinha passado por inconvenientes piores, o que era uma mulher de corpo magro com uma faca apontada para si? Mas seu instinto não era enlouquecido naquele momento, muito pelo contrário. Ela não tinha apenas a si mesma para se preocupar, tinha seus familiares. Seus filhos. Crianças frágeis que precisavam de uma mãe mais do que qualquer outra coisa. Aquele chá provavelmente a apagaria, apenas isso. O que aconteceria depois, é claro, era uma incógnita. Onde estava Sean para dar um jeito em sua irmã maluca? 
Demetria segurou o objeto de porcelana com dedos trêmulos, resistindo o máximo que pode até levá-lo na direção de sua boca, roçando a borda em seus lábios que aos poucos se abriram, permitindo que o líquido quase negro e já frio descesse rapidamente por sua garganta. Não era ruim, apenas doce demais. Respirou aliviada quando sentiu a faca abandonar o contato com sua pele, sendo guardada novamente por Valerie, que sorriu satisfeita. 
Menos de um minuto foi o suficiente para que as pálpebras de Demetria ficassem pesadas e seus músculos relaxassem de um jeito absurdo. Um pouco tonta, ela tentou apoiar as duas mãos na mesa, determinada a levantar e tentar lidar com o efeito do que só podia ser uma droga. Sentiu duas mãos agressivas segurarem seus braços e depois puxá-los para frente, obrigando a mulher a se afastar da mesa e dar passos tortos por um caminho que a vista embaçada não permitia que enxergasse com clareza. Lutando para não ceder, assistiu a imagem distorcida de uma Valerie largar seu corpo em um tipo de sofá, e depois sentiu algo sendo jogado em cima de seu corpo, parecia um vestido. Um vestido volumoso. 
- Vista isso, Demetria. - a loira aconselhou, voltando a revelar sua faca. Atordoada demais para retrucar, Demetria tentou o máximo que os reflexos afetados a permitiam mover os braços e desabotoar seu sobretudo, não entendendo completamente nada. Longos três minutos custaram até que conseguiu se enfiar dentro de todo aquele tecido de cor preta, que mais a fazia parecer uma princesa sombria de tempos passados ou uma bruxa desajeitada fugindo da fogueira. As mangas eram longas e a saia volumosa demais. Insano. Dedos tocaram seus cabelos, formando com maestria uma longa trança com os fios levemente úmidos. Logo fora puxada para cima novamente, tentando se livrar das mãos que a seguravam. De repente tudo ficou escuro, e ela desceu uma pequena escada de madeira sem saber como foi capaz. As coisas aconteciam como flashes com intervalos de tempo programados. Hora enxergava algo, hora não enxergava mais nada. Nem mesmo conseguia manter pensamentos coerentes, apenas agia de acordo com a mulher que a segurava, levando-a até um escuro e empoeirado porão, obrigando a mulher a se sentar em uma cadeira. Logo Demetria estava com os braços presos para trás, assim como as penas amarradas. 
- Agora você está bela o suficiente para o grande espetáculo dessa noite. Principalmente para quando seu querido marido encontrá-la. Viva ou morta. - a que droga de espetáculo ela estava se referindo? Demetria começava a se irritar, pois não conseguia apagar de uma vez, apenas permanecia mais tonta do que se tivesse rodopiado cem vezes seguidas. 
- Você é completamente louca! - conseguiu dizer com uma voz embargada pela confusão. 
- Você não sabia? Todos nós somos loucos, o mundo é um imenso hospício. - Demetria ignorou as palavras insanas e encarou o aparelho celular jogado abaixo da cadeira onde estava, pelo menos Valerie não tinha notado que a mulher conseguiu levá-lo até ali com as mãos dormentes. O problema era como faria para conseguir ligar para alguém. - Comporte-se, querida, eu preciso sair agora, mas logo você terá notícias minhas. Não apenas minhas, mas de algumas outras pessoas. - Valerie acenou brevemente e subiu as escadas com pressa, deixando Demetria completamente sozinha e desesperada. Quem poderia salvá-la? 
Fechou os olhos e abaixou a cabeça, torcendo para não passar de um pesadelo.


As cortinas da janela eram afastadas diversas vezes, enquanto Joseph tentava lutar contra o nervosismo que acometia seu corpo de segundo em segundo. Já havia tentado ligar para ela dezenas de vezes, sem resposta alguma. Já tinha pensado em pegar o carro e ir atrás dela, mas caso a mulher estivesse bem, isso resultaria em outra briga entre os dois. Não sabendo mais o que fazer, ele bufou desanimado e largou o corpo no sofá, observando Jamie e Dominic que tinham olhos presos na tela da televisão de tela grande, com suas atenções voltadas completamente para o jogo que jogavam. O homem de repente encarou a cicatriz na lateral do crânio de Dominic, não conseguindo evitar a curiosidade. 
- Como foi que fez isso? - perguntou de qualquer jeito, tentando se distrair a qualquer custo. O loiro começou a respondê-lo sem desviar os olhos da tela, pressionando os dedos contra os botões do controle. 
- Acha que sou apenas um advogado? Vamos fingir que consegui essa cicatriz por nada, que foi apenas resultado da revolta de uma mulher doida que nunca poderia me ter pelo resto da vida. - respondeu de forma exagerada, mesmo que de fato não tivesse dado uma resposta objetiva. - Conheci homens maus, meu caro, homens muito maus. Quase tão maus quanto eu. - soltou um risinho, estufando o peito ao ganhar de Jamie em uma partida de futebol no jogo. - Porém, eu garanto que doeu menos do que se eu tivesse me submetido a uma vida conjugal. - Joseph rolou os olhos, não acreditando que ele começaria novamente com todo aquele assunto de que casamentos não valem a pena. A calma que Jonas tinha conseguido juntar se deteriorava aos poucos. Simplesmente não conseguia lidar com o fato de que Valerie queria simplesmente conversar com sua esposa. Algo lhe dizia que Demetria corria perigo. Arrependido por dizer a ela horas antes para não procurá-lo caso algo grave acontecesse, ele deixou que a raiva de si mesmo predominasse, levantando em um ímpeto do sofá e andando de um lado para outro, divertindo Dominic, que havia largado o jogo e se levantado também. 
- Não me venha com asneiras. - Joseph avisou de uma vez, dando as costas ao outro. 
- Vocês gostam de trocar os papeis, não é mesmo? No meu tempo os homens saíam à noite e as mulheres ficavam loucas em casa cuidando dos filhos. - o homem de preocupados olhos verdes não deteve a vontade de ignorar Dominic e mandá-lo para o inferno com suas filosofias de conteúdo frustrante, mas ele precisava desabafar sobre aquilo com alguém. Precisava de um amigo, alguém que ouviria seus problemas e, mesmo que não dissesse nada em seguida, pelo menos não o julgaria. 
- Eu tento evitar qualquer discrepância entre nós ultimamente, porque sei como tem sido difícil para ela. Aquela mulher pensa que me engana, mas eu sei que não tem cem por cento de paz há um bom tempo. E eu gostaria de poder livrá-la disso, de tirar ele da vida dela de uma vez por todas. Mas não sei como fazer isso sem sujar minhas mãos
- Eu daria um bom conselho, se tivesse um, é claro. Mas minha área é outra, cara. - Dominic deixou o bom humor evidente, mesmo sabendo que não seria propício. Tentou um sorrisinho amarelo, em busca de meios para evitar aquela conversa. Não queria conversar sobre problemas em relacionamentos com mulheres. Não gostava do turbilhão de memórias que vinham em sua mente... Elas o enfraqueciam. 
Jamie se afastou dos dois quando, olhando através da janela, avistou um homem parado do lado de fora do portão. Disse a seu pai que iria para o lado de fora buscar sua bola de futebol, mas que logo retornaria. Passou pela porta e pisou no gramado, correndo até o portão e o puxando com força, determinado a abri-lo. Encarou o homem alto que o olhava friamente, ignorando o frio que deixava suas bochechas sardentas coradas. Jamie pensou em correr e voltar, mas a voz do mais velho o surpreendeu. 
- Sua mãe está em casa? - o garoto negou. - Seu pai está? - então ele concordou. - Você viria dar uma volta com seu avô, Jamie? - o mais novo arregalou os olhos, olhando para trás diversas vezes. 
- O senhor é meu avô? - piscou os olhos surpreso e quase deixando que o começo de um sorriso surgisse nos lábios, porém Arthur o fitava indiferente, mais interessado no caos que promoveria ao sequestrar aquele garoto. Estava em fúria, completamente exasperado pelo acontecimento de várias horas antes. Pisaram em seu poder, o fizeram parecer um fraco idiota que nem mesmo conseguia se defender de uma mulher. E ele até poderia ter buscado aquele grupo por Nova York, mas a vontade de pegar o primeiro avião disponível e voar até Londres falou muito mais alto. Era apenas um corpo movido pelo desejo da crueldade, a vontade de eliminar todos de seu caminho. Estava psicologicamente perturbado. Jamie negou com a cabeça, dando um passo para trás. 
- Nem se eu disser que sua mãe corre perigo? - esperou blefar, contando com a inocência do garoto. 
- O que você fez com ela? - Jamie adotou uma pose defensiva, como se acreditasse ser capaz de lutar contra alguém tão mais velho, forte e maldoso. 
- Venha comigo e irá descobrir. - Arthur ergueu uma sobrancelha, os olhos verdes brilhando malignamente. 
- É mentira! - o mais novo esbravejou. 
- Consegue imaginar o quão desapontador será dizer a sua mãe que o próprio filho se recusou a ir salvá-la? - confundindo completamente a cabeça de Jamie, o homem sorriu vitorioso quando o garoto abaixou a cabeça e pareceu pensar, prestes a aceitar. 
- Se eu for, você promete não fazer nada com ela? 
- Prometo, é claro. - deu de ombros, apontando um veículo do outro lado da rua. 
Do lado de dentro da casa, Joseph identificou o barulho de um carro partir em alta velocidade. Olhou pela janela e não encontrou Jamie brincando pelo jardim. Praticamente correu para o lado de fora, olhando atônito para o portão aberto. Levou as mãos até a cabeça, não acreditando no que estava acontecendo. Primeiro Demetria que tinha sido impulsiva o suficiente para ir atrás de uma provável armadilha, e então seu filho, provavelmente sequestrado por alguém. Por descuido seu, por sua desgraçada falta de atenção! E um nome nunca fora tão óbvio em sua mente: Arthur. 
Seria uma noite agitada, agitada como pensou nunca mais presenciar. 


Nova York

O rosto com algumas escoriações continuou sem qualquer sinal de mudança, enquanto olhos distantes fitavam a vista precária proporcionada pela janela de um quarto de hotel barato. Karlie ignorou a pequena movimentação no lado de dentro do recinto e pensou em tudo que tinha acontecido naquele dia que logo terminaria. Caos. O puro caos. As consequências. Lexi permanecia internada em um hospital, sem documentos, sem familiares. Seu estado era grave, perdera muito sangue. E seu sangue era de certa forma raro. A ruiva sacou o celular do bolso e discou uma sequência de números exaustivamente, pois já tinha tentado muito. Ela, Cassie e Julian acabaram chegando ao assunto que envolvia Demetria, a estranha descoberta de que todos eles a conheciam. A mulher queria ligar para Londres e avisar do ocorrido, talvez pudesse fazer alguma diferença, mas havia caído na caixa postal novamente. Ela saiu da janela e encarou Julian e Olivia adormecidos em uma cama de casal simples, os dois demoraram para conseguir atingir a calma, felizmente caindo logo no sono. Cassie permanecia largada em um sofá empoeirado de cor marrom, encarando o piso desgastado com os olhos fundos e perdidos. Estava mergulhada em um profundo martírio, tão profundo quanto um mar de águas misteriosas e agitadas. Quanto mais tentava encontrar a superfície, mais era sugada pela obscuridade que a envolvia. Sabia que sua vida nunca mais seria a mesma, principalmente depois daquele dia. 
Principalmente se Lexi não resistisse. 
- Por que fez tudo aquilo? Por que me ajudou? Você não tinha intenção alguma, eu sei que fui detestável. Só queria uma oportunidade para poder me explicar e... 
- Cale a boca, Barbie, não é a mim que você deve explicações. - Karlie sentou-se ao seu lado, ignorando a fome que já a abatia. Mas era um risco sair daquele quarto. 
- É sério, por que fez isso? 
- Porque eu não tinha nada melhor para fazer. - deu de ombros, acomodando o corpo no estofado desconfortável e gasto. Tentou ligar para Demetria novamente, bufando ao notar o fracasso novamente, jogando o aparelho longe. As duas olharam para pai e filha dormindo, e Karlie soltou um risinho malicioso. Cassie apenas abaixou a cabeça, desconfortável. - Sabe, eu notei um clima entre vocês, gata! 
- Não me venha com conversinhas, eu sei que está me odiando agora. 
- Eu não te odeio, no momento não estou autorizada a sentir nada. - riu da própria conclusão, prendendo os cabelos bagunçados em um coque frouxo, livrando-se da jaqueta. - Só não consigo entender o que a levou a abandonar seus filhos, cara. Como te expliquei mais cedo, essa foi a primeira coisa que veio em minha mente quando perdi o meu. - a ruiva engoliu em seco ao ser atingida pela memória, chacoalhando a cabeça. 
- Já disse que conto o que aconteceu, se você quiser que eu conte, mas não sei se muda alguma coisa. 
- Provavelmente mudaria se o tal Jared ainda estivesse com você. - Karlie fazia questão de relembrar trechos de uma conversa que as duas haviam tido horas antes, enquanto esperavam por notícias de Lexi no hospital. Cassie sentiu os olhos marejados, mas os limpou com as costas da mão e suspirou. 
- Você ia gostar do Jared, deveria ter conhecido ele. Era o tipo de pessoa que sabia mudar a vida dos outros com simples palavras. Mas não restou mais nada, apenas arrependimento. - ela olhou para Julian na cama, se perdendo em suas feições calmas. 
- O que pretende fazer agora? - Karlie perguntou distraída, ignorando a luz amarelada que piscava precariamente. 
- Se eu sobreviver até amanhã, - riu com a ideia sombria de que Arthur poderia encontrar a todos eles e promover uma matança. - irei embora. Tentar começar de novo, recuperar meus filhos. 
- Faça o que quiser, mas fale com a Demetria antes. Ela realmente te considerava uma amiga. 
- No passado. - Cassie lamentou. 
- Disso eu não sei. Se resolva com ela, Barbie. 
Um silêncio confortável envolveu todo o quarto, o único som às vezes distinguível era o vento que se chocava contra a janela. O tipo de silêncio relaxante que antecede algo temido por uma das partes. Como uma conversa, ou uma pergunta. 
- Sabe o que eu daria para poder voltar no tempo? - Karlie abriu os olhos, prestando atenção nas palavras da outra mulher. Apenas assentiu, curiosa para ouvir o que viria a seguir. Queria tentar entender Cassie, pelo menos uma vez. - As coisas nunca mais serão como antes. 
- Exato, porque talvez elas possam melhorar. - o tom esperançoso na voz de Karlie era uma novidade, que certamente obrigou Cassie a unir as sobrancelhas. - Me conte o que aconteceu. - a loira respirou fundo, concordando. 
- Vou tentar... 

Flashback

Era um dia comum de um típico inverno fora de época, mas não impedia Cassie de embarcar em sua longa viagem por entre todas aquelas lojas. Mesmo com a companhia dos dois pequenos, ela não se deixava desanimar, tinha sempre um olho no que lhe interessava e um em seus filhos. Encostou um carrinho de bebê duplo - apropriado para gêmeos - próximo de si e se distraiu por um momento, analisando as diversas vitrines de algumas lojas requintadas. Os preços marcados nas etiquetas a entristeciam, pois não teria condições de comprar algo daquele valor tão elevado. Irritada, retirou o celular que tocava dentro de sua bolsa. Atendeu afobada, agradecendo por se tratar de sua mãe. Iniciou uma conversa alvoroçada, reclamando de algumas coisas da vida e recebendo conselhos sem fundamento da mãe, que tentava dizer a ela que tudo ficaria bem. Voltou a olhar para o carrinho aparentemente intacto, deixando o celular cair e se chocar contra o chão quando constatou que um dos lugares estava vazio. 
Apenas Dianna estava ali, adormecida, com os cabelos loirinhos e a pele tão alva que contrastava com suas bochechas rosadas. Desesperando-se, Cassie olhou ao redor, chamando pelo nome do filho como se ele pudesse de fato responder. Ignorou o aparelho jogado no chão e semicerrou os olhos úmidos por lágrimas ao avistar um homem encapuzado adentrar a um beco juntamente com um bebê de cabelos loiros em seu colo. O ser se virou, como se soubesse que Cassie o fitava e a chamou com um dedo, sumindo por entre a parcial escuridão do beco. Cassie segurou o carrinho com força e o levou até o outro lado da rua, tentando ser forte, tentando não assustar Dianna. Como queria que Jared ainda estivesse vivo, nem que os dois não estivessem mais juntos. A vida era algo tão injusto! 
Ela entrou tremendo naquele local, procurando por algum indício de seu bebê. Não demorou para que identificasse seu choro desesperando, passando a chorar também. O homem encapuzado revelou-se do outro lado, segurando o pequeno com cuidado, mesmo que seu olhar não passasse mensagem alguma de tranquilidade. 
- Devolva meu filho, por favor! Eu... Eu faço qualquer coisa. - implorou, pedindo aos céus que alguém estivesse observando tudo aquilo e logo apareceria para ajudá-la. Não sabia se o homem portava alguma arma, então qualquer movimento deveria ser calculado. Por mais que seu sofrido coração de mãe não tivesse resistência o suficiente para aguentar presenciar tudo aquilo, por mais que sua mente estivesse entrado em estado de choque, a impossibilitando de agir com inteligência. Apenas o instinto reinava ali. 
Qualquer coisa? - a voz interessada do ser de roupas negras surgiu de repente, e ele se aproximou da mulher com cautela, erguendo o dedo indicador da mão livre. - Estaria mesmo disposta ao que for determinado para ter o moleque de volta? - Dimitri continuava a chorar, o que a desesperava ainda mais. 
- Sim, qualquer coisa. Eu imploro, devolva meu bebê... 
- Tudo bem, tudo bem, aqui está. - ela respirou aliviada quando sentiu o calor de seu filho em seus braços novamente, encostando os lábios na pequena testa de pele tão macia, depositando um beijo reconfortante ali. Esquecendo-se de suas palavras anteriores, Cassie estava motivada a proteger os gêmeos no carrinho e sair correndo dali, para então se isolar em sua casa até que o pânico fosse embora por completo. - Onde você pensa que vai? Pensei que um acordo estava se formando por aqui... 

Tropeçando nos próprios pés, ela fugiu aos prantos daquela maldita festa. Ignorando a saia de seu vestido rodado que se sujava com a poeira do caminho que contornava, Cassie enxugou as lágrimas e se sentiu inferior a nada. Realmente, realmente tinha sido capaz de dizer tantas atrocidades a pessoa que sempre esteve por perto para apoiá-la. Fora mal agradecida o suficiente para ferir os sentimentos da única amiga de verdade que teve durante a vida. E sabia que, daquele momento em diante, estava acabado. Demetria nunca a perdoaria, e ela tinha convicção de que não era digna de perdão algum. Sentia vergonha de si mesma, nojo. Não sabia como conseguiria chegar em casa e olhar para seus bebês sabendo o que teria de fazer. A ideia era insuportável, a certeza massacrava seu coração que batia tão acelerado enquanto lágrimas lavavam a maquiagem borrada em seu rosto. Encostou-se à uma árvore próxima dali e deixou o corpo ceder, acabando sentada. Observou as estrelas no céu, se perguntando se certo alguém estaria olhando por ela. Provavelmente não, ela pensou. Ninguém olhava ela senão com olhos maldosos, olhos desapontados e enojados. Para Cassie havia chegado o momento da vida em que não é possível encontrar mais caminho algum, todos estavam bloqueados por suas decisões tão errôneas e de consequências tão desprezíveis. 

Segurou as mãos dos dois pequenos que a olhavam com um brilho sem igual nos olhos, o brilho que apenas inocentes conseguem fazer uso. Os três estavam sobre a cama do quarto de Cassie, onde duas malas repousavam ao lado da porta entreaberta. Tendo consciência de que sua empregada e babá dos gêmeos estava por perto, ela rapidamente levantou-se e pegou papel e caneta, escrevendo rapidamente palavras doloridas. Não acreditava que tinha mesmo sido capaz de aceitar aquela proposta única e exclusivamente para não ter que dividir sofrimento com as duas pessoas que mais amava no mundo. Não acreditava que tinha aceitado dinheiro para fornecer informações cruciais da vida de seus amigos. 
- Me desculpem, mas se eu tiver que ficar longe para que vocês permaneçam bem, é exatamente isso que vou fazer. - relutante sobre deixar o recinto, voltou a se aproximar da cama e depositou um beijo demorado na testa de cada um, molhando o rosto dos bebês com suas lágrimas salgadas de amargura. Qual era o grande propósito de tudo aquilo? Por que o tal Arthur tinha que obrigá-la a tal coisa? Será que odiava tanto sua filha Demetria para afetá-la até mesmo através de seus amigos, arruinando a vida de seus amigos? E como ignorar uma ameaça como aquela? Cassie já tinha ouvido falar que mães não medem sacrifícios por seus filhos, mas nunca esperou sentir na pele o peso daquele fato. 
Saiu rápido do quarto, levando as malas desajeitadamente para baixo. Ao passar pela porta de entrada da casa que conseguiu com tanto esforço, não pensou antes de passar a chave pela fechadura e trancar a emprega e os bebês ali dentro, indo para o meio do jardim, parando e olhando insistente para um céu de nuvens em tons que variavam entre escuros e claros. 
Eu sinto muito, Jared
Desculpou-se com o falecido, assistindo um veículo escuro se aproximar. Em seguida, seus atos foram mecânicos. Entrou, abaixou a cabeça e esperou. Esperou pela derrota, fraqueza, impotência. Enquanto ia se afastando aos poucos de casa, virou o pescoço para olhar o lugar por - talvez - uma última vez. 

Fim do flashback.

- Nós deveríamos ter explodido a cabeça daquele demônio. - a voz baixa e vingativa de Karlie soou assim que Cassie encerrou sua explicação e se calou, procurando não pensar mais nas cenas que ainda domavam sua mente. Contou apenas o que lhe tinha acontecido, pouco se importando se a outra acreditaria ou não. Ela já tinha quebrado a confiança de muitas pessoas, então não fazia lá muita diferença. Mudando completamente o rumo da conversa, a ruiva se levantou e pegou o caderno amassado colocado sobre a cama, folheando calmamente as páginas. - Por que a Lexi segurava isso com tanta vontade? Não vejo nada de tão extraordinário aqui. - comentou, voltando ao seu lugar de antes e entregando o caderno para a loira, que sorriu sem mostrar os dentes. 
- O Arthur queria que ela fizesse relatórios completos da "experiência" com o Julian, mas não era exatamente isso que Lexi pretendia escrever. Veja. - mostrou uma página cheia de anotações misturadas, apontando para uma em especial ao final. - Ela estava escrevendo um livro as escondidas. 
As duas se dispuseram a ler, com os olhos atentos as palavras que de repente faziam muito sentido. 
"Há o fogo, e há o gelo. Se jogarmos uma pedra de gelo sobre uma mediana chama, ou até mesmo uma irrelevante fagulha, há quem diga que a frieza prevalecerá, será a vencedora. Pode até ser, mas é evidente que o gelo ficará abalado e derreterá antes do previsto. E outra nova fagulha poderá surgir abruptamente, cheia de vida nova. Há fogo e gelo. Mas quem poderá determinar o benfeitor e o malfeitor?
O caderno fora fechado, enquanto as duas mulheres refletiam em silêncio. Na cama, Olivia se mexia desconfortável, como se estivesse tendo um sonho ruim. A expressão no rosto de seu pai às vezes se repuxava em uma careta, como se sentisse agonia por algo que enxergava em outro mundo. O mundo dos sonhos. 


(Coloque a quarta música para tocar!)
Era uma floresta densa, banhada pela silenciosa e desafiadora escuridão da noite. A lua cheia brilhava majestosa bem ao centro de um céu sem resquícios de estrelas. O caminho que pés descalços e perdidos continuava a traçar era composto por lama, galhos velhos, folhas secas - barulhentas quando pisadas - e pedras escorregadias que quase derrubaram a mulher dezenas de vezes. As corujas piavam protegidas pelas sombras das longas árvores de folhas escuras e galhos grossos. O som arrepiava sua pele, eriçando seus poros e elevando a quantidade de batidas que seu coração era capaz de aguentar. Os olhos grandes e curiosos das corujas pareciam acompanhar Demetria por onde quer que ela fosse, como se quisessem descobrir qual caminho tomaria, tentando alertá-la do perigo. A mulher usava as mãos para desviar galhos que surgiam em sua direção, vez ou outra sendo obrigada a erguer a barra do vestido preto para que não tropeçasse nos próprios pés. A cada novo passo que dava, mais parecia se perder no meio do que lhe parecia semelhante a um labirinto. A escuridão parecia puxá-la para algum destino, sugá-la aos poucos, por mais que se segurasse nos caules das árvores para tentar estabilizar a respiração ofegante e remover os fios teimosos de cabelo que grudavam em sua pele levemente suada. Em meio ao silêncio angustiante, triste por não ter mais nem mesmo o som das corujas para acalmá-la um pouco, Demetria avistou ao longe um pequeno corpo encolhido e escorado em um grosso e gigante caule, que sustentava a maior das árvores por ali. Receosa, Demetria deixou o ar denso - apesar de puro - entrar em seus pulmões e se dispôs a alcançar a garotinha, que soluçava presa em um choro baixo. Assim que se abaixou e tocou seu cabelo loiro com os dedos frios, o rosto da mesma se ergueu e rapidamente ela apontou para algo a frente das duas. Demetria virou-se para olhar, conseguindo identificar apenas o som de folhas sendo esmagadas. Passos. As duas permaneceram mudas e estagnadas ali, esperando enquanto uma sombra ficava cada vez mais aparente em meio a luz da lua que refletia no chão úmido.
Um homem surgiu, o rosto sendo iluminado apenas em um dos lados, o lado em que a lua conseguia alcançar. Demetria forçou a vista para reconhecê-lo, perguntando em seguida:
- Carter?
- Tente de novo. - outra voz surgiu atrás da pessoa ainda muda, a obrigando a se virar e recuar alguns passos, ficando próxima das outras duas. Um ser de cabelos espetados, roupas pretas e tatuagens pela pele exposta dos braços surgiu com um sorrisinho de canto, o queixo erguido de forma imponente. - Parece que finalmente consegui reunir vocês três em um mesmo sonho. -Demetria, Olivia e Julian se entreolharam. - Vocês dois. - Carter apontou destemido para pai e filha, depois moveu o dedo indicador até a direção de Demetria. - Sonharam com ela e com seu marido, não sonharam? É uma informação verídica? - os dois apenas concordaram com a cabeça. - Saiba, querida irmã... - o homem de olhos verdes brilhantes como a lua aproximou-se de umaDemetria encolhida, segurando sua mão com algo semelhante a afeto, obrigando-a a encarar as duas mãos juntas e olhar espantada para o irmão. - Que esse foi o jeito que encontrei de tentar fazer com que esses dois te encontrassem. Vocês sabem que estão todos ligados a isso, que todos fazem partes dos planos de um mesmo homem insano. Nosso pai, irmãzinha.
- E você espera que nós acreditemos nisso? - Julian se manifestou inconformado. Demetria olhava de um para o outro, analisando as semelhanças.
- Se não quer acreditar, o problema é seu. - Carter rebateu, não ligando a mínima para opiniões. - O importante é que consegui cumprir meu objetivo, que era fazer com que você - apontou para Julian - encontrasse a única que ainda pode acabar com aquele ser.
- Não, eu não posso acabar com ele sozinha. - Demetria admitiu, frustrada consigo mesma. Gostaria de ter todo aquele poder, mas para isso deveria se arriscar demais, se submeter a coisas que provavelmente arrancariam de uma vez por todas seu bom senso. Sua boa alma seria corrompida, sucumbindo a escuridão que tanto temia.
- O velho está enfraquecendo. - Carter comemorou, com direito até a erguer um dos braços e balançá-lo em sinal de vitória. Em seguida, olhou novamente nos olhos da irmã, deixando transbordar toda a insanidade responsável por arruinar sua vida. - E ele quer tanto me ver, está tão arrependido pelo que me causou... - fitou Julian, negando com a cabeça em meio a risos de deboche. - Nunca vai conseguir o que quer. - levantou-se, olhando muito além da floresta, enxergando algo que apenas ele conseguiria enxergar. - Arthur sente falta do filhinho? Não seja por isso... Em breve ele o verá.
De repente, tudo ficou escuro. Enxergar qualquer coisa se tornou algo impossível. O ar começava a faltar, enquanto Demetria torcia para despertar de uma vez.


Julian abriu os olhos.
Olivia abriu os olhos.
Em Londres, Demetria abriu os olhos.
Os três, juntos, em um mesmo sonho com Carter Stone.


Londres

O instinto de Jamie lhe aconselhava a não dizer palavra alguma, por mais que ele já conseguisse desconfiar que Arthur não tinha escondido sua mãe em lugar algum. Tudo levava a crer que se tratava de uma habilidosa mentira. O garoto pensou em seu pai, que deveria estar a beira da loucura só com o pensamento de que seu filho poderia estar em perigo devido a um descuido seu. Jamie percebeu que o veículo foi perdendo a velocidade aos poucos, olhando através da janela do carro e enxergando uma praça vazia, com aspecto abandonado. Quando voltou a olhar para dentro do carro, percebeu que o mais velho já tinha saído, então decidiu fazer o mesmo, abrindo a porta e sentindo o vento frio se chocar contra seu rosto sardento, obrigando os olhos azuis a se fecharem quando uma corrente de ar muito forte os irritou. Recuperando-se rapidamente, ficou parado ao lado do veículo, assistindo Arthur se sentar em um único banco de madeira velha. O homem olhava distante para o nada, como se absorvendo informações e se atormentando com verdades cruéis esfregadas em sua cara da forma menos benevolente o possível. 
- Eu sabia! Você mentiu para mim! - Jamie acusou, acabando com a tolerância de Arthur, que se levantou e caminho com pressa até o garoto, desistindo segundos depois e recuando. Não conseguia controlar como deveria aquela súbita raiva. Jamie tentava fingir que não tremia de medo, torcendo para que seus pais o encontrassem logo. E, principalmente, torcendo para sua mãe estar bem. 
- Acostume-se, garoto, muitas pessoas vão mentir para você durante toda a vida. - Arthur aconselhou de forma vaga, voltando a se sentar no banco. - E nada nunca será bom o bastante para que valha a pena largar o que você já tem. - perdido em uma reflexão, o homem começou a falar sem se importar com o fato de Jamie entender ou não suas palavras. Esperava que o garoto levasse aquilo como o único conselho que fora capaz de dar. O único conselho sem intenções ruins, apenas de um avô para um neto. - Porém, se fizer isso, pode fingir que consegue superar arrependimentos e erros, mas não consegue. E as pessoas ao redor não se importam com isso, elas não fazem questão alguma de tentar entender. 
- E você é uma dessas pessoas. - Jamie disse determinado, cruzando os braços. - Poderia ter tido uma família, mas virou esse velho malvado que ninguém gosta. - a voz do garoto fora tão rude que quase poderia se tornar uma situação cômica. Arthur tentou esconder um sorriso fechado que quis se formar em seus lábios. 
- Pessoas iludidas são as que mais se machucam. Abra os olhos, garoto! O mundo não é o que seus pais estão tentando te fazer acreditar. 
- Meus pais não estão tentando me fazer acreditar em nada. - Jamie sentou-se ao lado daquele que gostaria de poder chamar de avô. - Eu sei que o mundo é cheio de pessoas ruins, mas nem todas são assim. Enquanto existir uma que não seja egoísta, temos chance. - Arthur riu com escárnio. 
- Você nem mesmo é filho de Demetria e ainda assim os dois se parecem no jeito no falar. Dois tolos. - Jamie não permitiria que o ser frio e sem sentimentos desvirtuasse seu conceito de mundo. E Arthur não conseguia evitar de depreciar a ligação existente ali, jogando fora a oportunidade de permitir que o garoto soubesse o que era ter mais pessoas importantes ao seu redor. Mas abrir mão do certo era uma de suas grandes características, então nem se importava mais com isso. 
- Você sabe que não vai vencer. - Jamie voltou a falar, dessa vez com a voz mais baixa. - E deveria ter orgulho dela, da sua filha. Você é malvado e velho, como eu já disse, e não tem mais tempo para conseguir ser feliz. Ainda bem que não quer ser meu avô, porque eu também não quero ser seu neto. 
- Escute aqui, seu moleque mal educado... 
- Jamie? - alguém se aproximou, atraindo a atenção dos dois. O homem cujas mãos estavam dentro dos bolsos do casaco fitava o garoto de um jeito confuso, analisando também a expressão irritada de Arthur, que se levantou e já pensava em uma forma de afastá-lo. 
- Olá. - Jamie respondeu visivelmente feliz, pois não via aquele que se aproximava há tempos. 
- O que faz aqui? Seus pais sabem que está aqui com... 
- Eu deveria chamar ele de avô, mas não vale a pena. - o garoto explicou sem muita vontade, levantando-se do banco e indo para perto do homem que fitava Arthur com coragem, desconfiando que pudesse se tratar de algo ruim. Desconfiando que aquele rosto era familiar demais... Talvez, apenas talvez, soubesse de quem se tratava. - E não, meus pais não sabem. 
- Então venha comigo, vou te levar para casa. 
Arthur não conseguiu fazer nada. Não conseguiu impedir aquela situação como havia previsto. Algo em seu interior o obrigou a não fazer mal algum a Jamie, por mais que não soubesse do que tratava. Estava fraco naquela noite, com sensações estranhas e sentimentos absurdos que levavam a sede de vingança embora em instantes. Mas ele era o dono de suas ações, e sua mente perturbada não teria controle algum sobre o que estava prestes a fazer. 


Demetria's P.O.V

A mistura de um som de surpresa e espanto escapou por minha garganta assim que subitamente abri os olhos, sentindo a cabeça doer e mãos e pés dormentes devido aos nós poderosos que os mantiveram presos durante muito tempo, por mais que eu não fosse capaz de calcular quanto. Desesperada por algo que pudesse aliviar a sensação de minha boca estar completamente seca, ouvi o celular abaixo da cadeira tocar. Já deveria ter tocado umas cem vezes, mas em nenhuma delas eu pude atender, e nem mesmo descobrir de quem se tratava. Forcei meu pescoço a se inclinar para um lado, para que eu conseguisse enxergar a pequena janela no canto daquele porão. Ainda estava escuro, então não muito tempo deveria ter passado. Fiz força, determinada a conseguir me soltar de qualquer jeito, até pensei em me jogar no chão e rastejar até que encontrasse algo pontudo o suficiente para quebrar aquele aperto em meus membros. Porém, enquanto a ideia se desenvolvia em minha mente, o pânico súbito tomou conta de mim. 
Eu estava sozinha ali, ninguém - a não ser a louca da Valerie - tinha conhecimento de onde eu me encontrava. E se ela demorasse muito para voltar ou voltasse movida pela ideia de me eliminar de seu caminho? Não, isso não poderia acontecer. Rapidamente eu consegui pensar em meu marido e filhos, minha família que precisava de mim. Ignorando tudo ao redor, até mesmo a estranha sensação que me acompanhava desde o sonho com Julian, Carter e Olivia, obriguei meus pulmões a resistirem e minha garganta a não falhar quando gritei o mais alto que pude, repetindo o ato por três vezes seguidas. Nada. A ardência já se instalava pela minha garganta fraca, então arrisquei a tentar enquanto ainda fosse capaz. Gritei, gritei e gritei, implorando por qualquer tipo de socorro. 
Uma iluminação repentina surgiu no topo da escada, juntamente com o barulho de uma porta se chocando contra uma parede. Passos rápidos ecoaram pelas escadas, até que meu rosto provavelmente se iluminou com o alívio que senti ao encontrar ninguém mais ninguém menos que Sean. Ele cessou seus movimentos quando constatou que se tratava de mim, e apontou assustado para a situação que eu me encontrava. 
- Q-quem fez isso com você? - então ele se aproximou completamente, desfazendo os nós das cordas com agilidade. Respirei fundo, abrindo e fechando as mãos várias vezes para obrigar a sangue a circular perfeitamente de novo. 
- A louca da sua irmã! - exclamei, recebendo ajuda dele para conseguir levantar. - Ela me forçou a beber um chá e... 
- Provavelmente o chá que ela toma quando quer dormir feito um bebê. - apontei para o chão, indicando o celular e prontamente Sean se abaixou para pegá-lo, o colocando em minha mão. Com a vista se estabilizando aos poucos, vasculhei por todas as ligações perdidas. A maioria de Joseph, e as restantes de algum número em Nova York. No mesmo instante pensei em Scarlett. Eu precisava sair logo dali e avisar que estava bem antes que Valerie voltasse. 
- Sean, me ajude a sair daqui, sim? 
- Depois disso eu até te ajuda a matar minha irmã, se quisesse. - ignorei sua proposta tentadora no momento e juntos subimos as escadas. Ao chegarmos à sala de estar, ele pediu que eu esperasse enquanto correu escada a cima, voltando menos de dois minutos depois. Seu rosto parecia pálido. - Valerie cumpriu com o que havia me dito hoje mais cedo. Suas roupas não estão lá em cima... Ela foi embora
- Eu até comemoraria se ainda não estivesse um pouco tonta... - fui sincera, mesmo percebendo que ele andava de um lado para o outro severamente preocupado. 
- O problema, Demetria, é que ela só iria embora depois de fazer uma coisa
- Que coisa? 
Meu celular voltou a tocar. Sorri aliviada ao reconhecer o número de Joseph, e como se a tontura não fizesse mais diferença, como se me deixasse livre, me movi em passos largos até o lado de fora da casa, caminhando até o meio do jardim para atentar. O ar frio me fez bem, então respirei fundo, levando o aparelho até o ouvido. 
Demi? Demetria, onde é que você está? Pelo amor de Deus, me diga que nada aconteceu! 
- Ei, fique calmo, eu estou bem agora. - prometi a ele, olhando para todos os lados, ainda com receio de que Valerie poderia voltar. Ou talvez uma parte de mim desejasse que ela voltasse. Um ódio sem escrúpulos queimava vivo dentro de mim. 
Agora
- Eu te explico depois, mas venha logo me buscar, estou em frente a casa dela! Você sabe onde fica, não sabe? Se não souber, está anotado em um papel na mesinha de vidro da sala de estar. Sim, eu disse que não ia precisar da sua ajuda, mas... 
Demetria, o Jamie desapareceu. - sua voz tão fraca e desolada cortou meu falatório incessante, fazendo crescer em meu peito um aperto que não dava muita liberdade para que o ar chegasse desimpedido aos meus pulmões. 
- O quê? - gritei, totalmente descrente. Não podia ser verdade. Neguei com a cabeça, dizendo a ele para parar com brincadeiras, mas Joseph continuava afirmando a seriedade de tudo aquilo. Sean parou ao meu lado, notando meu desespero que se iniciava ferozmente. 
Eu... 
- Como isso aconteceu? Joseph, me diga como diabos isso aconteceu! Você tem ideia do que pode acontecer? Mesmo que nosso filho esteja bem e que isso não tenha passado de um mal entendido, nós podemos perder a guarda dele! - minhas mãos tremiam, minha voz provavelmente era descontrolada. - Ligue para a polícia agora! 
Eu já fiz isso. Por favor, me desculpe. Foi um descuido meu e... 
- Shhh. - tentei passar a ele a calma que não existia dentro de mim. - O Matt e a mamãe estão bem, certo? - ele confirmou, para o meu alívio. - Venha me buscar e nós vamos dar um jeito em tudo isso. - pensei na ligação de Scarlett. Seria possível existir uma relação ali? 
Nós vamos encontrá-lo, e isso não ficará impune, eu prometo. 
- Estou torcendo para não se tratar do que imagino. 
Ele desligou, então só me restava esperar. Não conseguia parar de pensa em Jamie, meu Jamie. Meu filho correndo perigo. Não aguentando, larguei meu corpo ali mesmo no meio fio e tentei segurar as lágrimas, sentindo que Sean tentava me amparar com uma mão apoiada em minhas costas. 
- Vai ficar tudo bem. - ele disse brandamente. 
- Não tenho tanta certeza. Quando algo dá errado, é como se uma série de consequências desabasse sobre mim. Coisas assim, pelo menos na minha vida, sempre chegam acompanhadas por outras. 
Cessei meu desabafo e limpei as lágrimas do rosto quando as luzes dos postes piscaram. Aos poucos, um a um, cada pequenino sinal de iluminação que se espalhava pela cidade foi sumindo, dando lugar a uma nuvem de incertezas proveniente do ar obscuro que invadia as ruas vazias e escuras de uma vez. De repente, como o truque de um poderoso mágico, a cidade fora apagada. Silenciada pela escuridão completa. Permanecer com os olhos abertos ou fechados não apresentava uma diferença tão significativa. As brisas frias e constantes brincavam com meus cabelos, e a partir desse momento a sensação de mal estar foi embora por completo, possibilitando que eu conseguisse me levantar e ir para o meio da rua com Sean, enquanto tentávamos encontrar a explicação do súbito acontecimento. 
Um possível blackout bem diante de nós. 

Um comentário:

  1. Essa fanfic é tão bem escrita que chega a me dar vontade de chorar. Posta logo ;)

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Sem comentario, sem fic ;-)